Suposições comuns e desafiadoras sobre o Budismo na sala de aula*

25/02/2019


*Tradução de Sara Cristina de Souza. (https://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4757973E4).

Eva M. Pascal**

Professora, Religious Studies-

Saint Michael's College.

Associada ao Center for Global Christianity & Mission

Boston University.

Neste semestre eu estou ministrando uma disciplina introdutória de graduação sobre o Budismo em um college[i] católico de artes liberais[ii]. Aproximadamente metade desses estudantes são de origem católica. Muitos deles também alegam não pertencer a nenhuma forma de religião organizada. Ministrar um curso sobre Budismo coloca várias questões para os acadêmicos da religião, uma vez que muitos ocidentais - em especial os estudantes estadunidenses - trazem para a sala de aula uma série de ideias pré-concebidas sobre o que o Budismo é. Ou eles têm ideias claras sobre o que o Budismo não é. Muitos desses estudantes têm mais a dizer sobre o Budismo do que sobre qualquer outra religião fora do Cristianismo. Isso por si só tem sido um fato extraordinário, especialmente se considerarmos que muitos desses estudantes nunca viajaram para nenhum país de maioria budista, ou para um país onde o Budismo tem um impacto social e cultural significante. Muitos deles nunca estiveram em um templo budista; muitos nunca se encontraram com um monge ou uma monja budista; muitos nunca interagiram pessoalmente com uma pessoa leiga originária de lugares que os estudiosos budistas chamam de "o mundo budista". Estes incluem monarquias budistas como o Butão, ou o país com o maior percentual de seguidores - a Tailândia, ou a China, onde o Budismo conta com uma forte presença religiosa. Tudo isso indica que um dos desafios centrais em levar o conhecimento acadêmico sobre o Budismo para a sala de aula em um contexto ocidental é encorajar os alunos a confrontar e a pensar criticamente sobre noções pré-concebidas que eles mesmos trazem.

A disciplina foi originalmente limitada para quinze alunos, mas eu permiti que mais sete se matriculassem a pedido de uma lista de espera. Quando os estudantes me procuraram para se integrarem à disciplina, eles me disseram porque eles queriam cursá-la. Em geral, seu interesse em se juntar ao curso tinha a ver precisamente com seus vários pressupostos sobre o Budismo, e eles acreditavam que o Budismo lhes atraía mais por ser, em sua percepção, desprovido de exigências éticas estritas que eles associavam ao Cristianismo. Minha resposta era geralmente a mesma: eles estariam abertos a analisar criticamente essas noções? Se não, eles poderiam encontrar dificuldade em processar o material utilizado no curso.

Para enfrentar o desafio central de ensinar o Budismo para uma audiência que tem fortes premissas sobre a religião, eu levei para os estudantes no primeiro dia de aula o que eu chamo de "teste de conhecimentos budistas". O teste consiste em dez afirmações as quais os alunos deveriam indicar como verdadeira ou falsa (e se a afirmação era falsa, eles deveriam indicar o porquê). O teste incluía afirmações como "Todos os budistas meditam," "Todos os budistas são pacifistas," "Budismo é uma filosofia, não uma religião," e "Buda era um ser humano, não um deus, e na religião que ele fundou não há lugar para a adoração de deuses." Depois que os estudantes completaram o teste, nós o pontuamos em conjunto. E para a surpresa de muitos, eu revelei que todas as afirmações ali colocadas eram, de fato, falsas, porque o exercício não era um "teste", mas uma lista organizada por dois proeminentes estudiosos do Budismo, Robert Bushnell e Donald Lopez, sobre os "10 Equívocos sobre o Budismo."[iii] (Você pode ler a lista completa dos equívocos e os comentários de Bushnell e Lopez em On Tricycle: The Buddhist Review: https://tricycle.org/magazine/10-misconceptions-about-buddhism/.)

Como esses equívocos revelam, muitos ocidentais acreditam que o Budismo é uma religião pacífica, sem uma história de violência; alguns acreditam que ele não é uma religião, mas uma filosofia ou uma ciência da mente; outros pensam que ele se centra principalmente na prática da meditação, a qual não tem uma dimensão devocional. Todas essas ideias estão longe do modo como o Budismo é praticado e entendido pela grande maioria dos budistas e dos estudiosos do Budismo.

Eu conduzi o "teste" não para desencorajar os estudantes que procuraram o curso, ou para enganá-los. Muitos deles, na verdade, acharam o teste divertido. Eu faço esse exercício para preparar o curso, e para gentilmente alertar os alunos que eles estejam abertos para a possibilidade de que as maneiras através das quais o Budismo é experenciado ao redor do mundo podem não corresponder às suas primeiras expectativas, ou até mesmo ser opostas às suas expectativas. O exercício também inicia o processo de treinamento dos alunos para o estudo do Budismo de modo mais aprofundado e acadêmico, o qual vai além do conhecimento popular sobre o Budismo.

Não é por acaso que muitos equívocos tenham se difundido no Ocidente. É precisamente assim que alguns proponentes budistas escolheram retratar o Budismo para o Ocidente. Isso é parte de uma estratégia - por vezes deliberada, por vezes, não - usada por missionários e intérpretes budistas que retrata o Budismo de forma mais compreensível e atrativa para os ocidentais. O retrato seletivo do Budismo é parte de um processo de adaptação do Budismo para o solo ocidental. O processo de adaptação religiosa significa, em geral, destacar os aspectos do Budismo que são mais palatáveis, compreensíveis e atrativos para os ocidentais. Assim, os proponentes budistas por vezes destacam a meditação, ou alegam a compatibilidade budista com a ciência. Nesse processo de adaptação religiosa, os proponentes desassociam ou deixam de enfatizar outros aspectos da tradição que seriam menos atrativos ou pouco compreendidos, como a devoção aos deuses ou Bodhisattvas e a hierarquia da comunidade monástica (ou Sangha). Na seleção de quais aspectos da tradição enfatizar, o Budismo é percebido de modo a espelhar o oposto daquilo que as pessoas não gostam em sua própria formação religiosa.

O estudo acadêmico responsável e o ensino sobre religião devem ser capazes de distinguir entre o que uma religião é, utilizando-se de ferramentas científicas históricas e sociais, e identificar as alegações teológicas e filosóficas sobre o que uma religião deve ser. Assim, os estudantes podem aprender a apreciar a religião pela maneira como ela é vivida em Taiwan, ou no Camboja, ou mesmo em como ela é transformada nos Estados Unidos ou no Brasil. A maneira como a religião é praticada não se encaixa perfeitamente em como os proponentes da reforma budista, ou aqueles interessados em promover o Budismo no Ocidente, imaginam que ela seria.

O Budismo não é uma relíquia do passado, mas uma religião missionária dinâmica que, como o Cristianismo, tem se adaptado ao longo dos séculos a uma variedade de povos e culturas locais. No processo de inculturação, sempre há o debate de como se apresentar a religião de modo a encaixá-la em um determinado local. Nós podemos observar o processo se desdobrando no Ocidente. O modo como uma religião define a si mesma muda frequentemente, e os limites que os seguidores estabelecem para delimitar o que significa ser autenticamente budista, ou cristão, ou muçulmano, geralmente mudam. Em partes, é por isso que há tantas escolas budistas diferentes e concorrentes que alegam ser o caminho mais autêntico. Na sala de aula, ensinar sobre religião em uma perspectiva dos estudos das religiões significa apresentar aos estudantes um quadro completo de como os budistas vivem suas vidas - em especial quando a rica história dessa religião difere da prescrição filosófica de como ela deveria ser praticada.

[i] O college é uma instituição de ensino superior bastante comum nos Estados Unidos da América e no Canadá. Eles oferecem cursos de graduação/bacharelado (com duração de 4 anos ou mais), mas também oferecem cursos de menor duração, cujo diploma não equivale exatamente a uma graduação ou diploma universitário. Eles podem fazer parte de uma universidade (como faculdades específicas dentro de um conjunto) ou não. Por suas especificidades, e por não haver um correspondente exato dessas instituições no Brasil, optei por manter seu nome original conforme grafado na língua inglesa. (Nota da tradutora).

[ii] No contexto acadêmico estadunidense, "artes liberais" seriam literatura, filosofia, história, ciências sociais e humanidades. (Nota da tradutora)

[iii] Tradução livre de "10 Misconceptions about Buddhism."


*Eva Pascal is an Instructor at Saint Michael's College. She is a Ph.D. Candidate in the Graduate Division of Religious Studies in the History of Christianity at Boston University, and a Research Fellow at the Center for Global Christianity & Mission. She holds an M.Div. from Harvard University and B.A. in Religious Studies and Philosophy from La Sierra University. Her research interests include the history of Christianity in Asia and encounters with other religious traditions, especially Buddhism. Eva is particularly interested in Christian-Buddhist historical interaction and exchange in Southeast Asia. Her article "Buddhist Monks and Christian Friars: Religious and Cultural Exchange in the Making of Buddhism" in Studies in World Christianity (2016) is available at: https://www.euppublishing.com/doi/10.3366/swc.2016.0134. A summary of the article can be read on the Edinburgh University Blog: https://euppublishingblog.com/2016/05/17/what-do-monks-and-friars-have-in-common/


Personal Contact: epascal@bu.edu

Bibliographic suggestions:

Coleman, James William. "The Spread of Buddhism in The West: Missionary Work and the Pattern of Religious Diffusion." In Mixed Messages: Materiality, Textuality, Missions, edited by Jamie S. Scott and Gareth Griffiths, 155-72. 

Palgrave Macmillan, New York, 2005. https://doi.org/10.1057/9781403982322_9.Lopez, Donald S. Curators of the Buddha: The Study of Buddhism under Colonialism. Chicago: University of Chicago Press, 1995.McMahan, David L. The Making of Buddhist Modernism. Oxford; New York: Oxford University Press, 2008.

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