Religião e política: uma separação possível? Uma discussão a partir do caso italiano

27/08/2018

Quando se estuda a história de uma instituição religiosa como a Igreja Católica, fica difícil traçar uma separação clara entre o que pertence ao campo da fé e ao campo político. Normalmente os dois termos se confundem e, quando o discurso é eclesiástico, a ênfase recai sobre o aspecto religioso. Um bispo ou um padre raramente dirá que o seu discurso é político. O catolicismo italiano contemporâneo é elucidativo a esse respeito, sobretudo porque é a religião da maioria (em termos quantitativos e de tradição, e não necessariamente de prática ou pertencimento).

Mesmo não frequentando os ritos e não seguindo as doutrinas completamente, a maioria dos italianos se declara católica (em média 85-90% da população). É um catolicismo que se distanciou da instituição e assumiu uma certa independência ética em relação a alguns princípios defendidos pela Igreja (como aborto, divórcio, sexualidade, questões de gênero). A pluralidade religiosa na Itália cresceu nos últimos 30 anos devido à imigração. Afinal, um italiano dificilmente muda de religião. Ele pode frequentar ou "flertar" com outras práticas new age, astrológicas, mágicas, mas raramente se envolve profundamente com outras crenças. Do catolicismo eles migram ao ateísmo, sobretudo entre os mais jovens, mas ainda assim trata-se de uma minoria. Nesse sentido, a geração mais envolvida com práticas e vivências religiosas católicas é aquela que hoje tem mais de 50 anos.

A separação oficial entre o Estado e a Igreja Católica na Itália foi tardia. No Brasil, por exemplo, ela aconteceu no final do século XIX, consolidando-se na primeira constituição republicana, em 1891. Na Itália ocorreu somente em 1984 e ainda é muito discutível, visto que o catolicismo mantém alguns privilégios legitimados pela legislação e pelas práticas sociais. A Igreja Católica perdeu sua força somente no direito positivo, porque diante da opinião pública ela ainda é influente. Uma parte da população e dos envolvidos nos debates públicos (podemos também pensar em parte da intelectualidade) levam consigo um resquício do pensamento católico, seja de forma direta na defesa de uma família ou de valores cristãos, seja a partir dos não-ditos. Em uma sociedade de maioria católica de cidadãos e com uma minoria de pessoas pertencentes a outros credos (quase todos imigrantes), o discurso teológico torna-se marcadamente político, assim como os seus usos. É uma separação quase impossível, visto que o debate público está entrelaçado aos interesses e leituras católicas.

O discurso do papa, por exemplo, tem mais relevância social na Itália do que na França, mesmo a Igreja Católica pertencendo ao campo privado nos dois países. Não se trata apenas de uma questão de distância - visto que o Vaticano se encontra dentro do território de Roma -, mas de um efeito e de uma reverberação do discurso religioso que na Itália é mais evidente e acatada. A fala pontifícia tem mais efeito na Itália e nas sociedades que, mesmo passando por um processo de laicização, mantêm nas suas práticas e linguagens políticas uma matriz marcadamente católica.

Se pensarmos a ideia de política na vertente arendtiana, que retoma o conceito de polis e que remete ao diálogo, ao debate no campo público, podemos identificar um discurso religioso que é veiculado nas diversas mídias como político. Ainda que a Igreja reforce o caráter religioso e teológico dos seus discursos, sendo algo privado e pertencente à instituição - o que não estaria errado -, seria equivocado dizer que tais enunciados se restrinjam ao reparto privado e unicamente religioso. O que está em jogo é menos a "intenção real da Igreja" e mais o desdobrar desses discursos no meio social (mídia, nas políticas partidárias e públicas, no cotidiano e nas diversas vivências culturais). Se esse discurso sai dos muros eclesiásticos, já não é absolutamente privado e entra no debate público onde não só os católicos têm direito à voz.

A questão é que a Igreja Católica é uma instituição privada (ou seja, não pertence mais ao Estado), mas o seu discurso não. Vide, por exemplo, os pronunciamentos papais sobre as guerras e outros fenômenos sociais contemporâneos. Essa publicização da fé às vezes é feita de maneira intencional, já que o clero nunca aceitou muito bem a perda dos privilégios do passado. Na Itália contemporânea - onde o catolicismo é cada vez mais cultural e individual e menos institucional -, a Igreja tenta retomar a sua credibilidade diante das escolhas sociais, pessoais e públicas. O discurso público e publicizado é um caminho utilizado pela Igreja Católica para essa retomada de poder, mas não deveria passar despercebido e sem um olhar crítico por parte de todos que estão inseridos nos debates que são públicos.  


Imagens:

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