RELIGIÃO E LAICIDADE: DESAFIOS PARA A UNIVERSIDADE PÚBLICA.
Guilherme Amaral Luz (Instituto de História, da Universidade Federal de Uberlândia; INHIS/UFU).
A criação do CEHIR bem como de seu site para a divulgação da história cultural das religiões no Brasil são iniciativas muito bem-vindas para a academia brasileira. Não há quem duvide, creio, da pertinência do estudo sobre religiões na universidade pública e, certamente, estuda-las, por um viés não-religioso, não fere, de nenhum modo, o princípio da laicidade. Mas a questão sobre os limites do religioso e do não religioso e de seus tratamentos na universidade pública pode e deve ser lançada. Não só no campo da pesquisa; sobretudo, deve ser formulada nos âmbitos também do ensino e da extensão. Sem a pretensão de resolvê-la, este breve ensaio pretende enunciá-la e problematizá-la.
Em primeiro lugar, uma pergunta de resposta ilusória e aparentemente óbvia a se fazer é: o que há de religioso nas religiões? O tratamento da "religião" como substantivo (no singular ou no plural) é comum na academia, mas talvez seja o adjetivo o que realmente importe ao historiador da cultura e ao intérprete da "realidade social". Isso porque nem tudo que se pratica no âmbito de uma cultura religiosa é entendido pelos seus praticantes como religioso e nem tudo que se pratica, na esfera da laicidade, é desprovido de dimensões religiosas.
Podemos ilustrar esta nossa hipótese com alguns exemplos. Imaginemos um turista no interior de uma igreja em Ouro Preto ou qualquer outra cidade histórica. Mesmo que ele não seja católico, cristão ou mesmo alguém que tenha qualquer tipo de fé religiosa, há elementos daquele templo que dizem algo para ele, o interessam. A artística religiosa, embora trate primeiramente de simbologias relacionadas à uma religião, opera no interior de linguagens que não são (exclusivamente) religiosas. O que a religião, neste caso, faz é um "empréstimo" de linguagens capazes de dar vida e expressão a conceitos, emoções, impressões, sensações ou valores que não são de posse singular de seu credo.
Outro exemplo: as ações altruístas. Qualquer pessoa, religiosa ou não, é capaz de reconhecer o sofrimento alheio e prestar solidariedade. São abundantes as situações em que elas se deram ou se dão no passado e no presente históricos. Tais atos de "benevolência" não são substantivamente religiosos, mas eles podem ser assim "adjetivados" quando seus próprios atores os nomeiam como exercícios de "compaixão", "amor ao próximo", "caridade", "misericórdia"... Enfim, quando o traduzem conforme vocabulário próprio de sua comunidade religiosa.
"Religião/religiões", como substantivo, traduzem campos muito diversos, olhados de fora ou à distância. "Religioso", como adjetivo, é atribuição subjetiva. Depende de um olhar introspectivo ou extrovertido para práticas que, por si só, não têm substância apriorística. Daí começam a advir também as dificuldades. O que é ou não é "religioso" na universidade pública? Quais são os limites do laico e do não laico na abordagem universitária em relação ao "religioso"?
A comunidade universitária, que dá vida aos campi, não é, para começar, laica: ela é plural. Seus agentes vão de ateus e agnósticos aos mais fervorosos adeptos de diversas religiões. Ainda que os saberes que estudem não se afetem por questões de fé, muitas das motivações e usos que a comunidade acadêmica traz ou faz destes conhecimentos podem assumir conotações religiosas. No curso de história da UFU não são poucos os estudantes de graduação e pós-graduação que conheço ou conheci com inserção institucional em religiões: padres católicos, pastores evangélicos, lideranças de centros espíritas, de comunidades de Umbanda e Candomblé e de grupos de Congado, por exemplo. Muitos, quando não todos eles, foram motivados a estudar história como algo capaz de ser articulado com a vivência em suas comunidades. Motivações tais como a preservação do legado cultural e das suas tradições, compreensão a respeito dos contextos de constituição da doutrina ou a valorização social das suas práticas. Questões que, sendo "religiosas", interessam à universidade laica.
Uma questão metodológica importante, quando estes atores se voltam ao estudo de suas tradições religiosas ou das tradições religiosas do "outro", é a do "distanciamento". O chamado "ateísmo metodológico" muitas vezes é um desafio difícil de ser superado para alguns estudantes menos dispostos a relativizarem os seus conteúdos de fé sob o prisma/pressuposto de sua constituição cultural. Porém, mesmo quando isso é superado, a motivação religiosa pode persistir, com elas, os pré-conceitos; para além deles, as possibilidades de abertura a um horizonte plural. Pré-conceitos e aberturas que também se estabelecem para aqueles estudiosos de religiões que partem de concepções agnósticas, atéias ou irreligiosas...
E quando grupos religiosos buscam a universidade na busca por parcerias? Isso fere a laicidade institucional? A universidade pública pode/deve fazer e buscar tais parcerias na pesquisa, no ensino e na extensão? Gostaria de discutir este ponto a partir de duas experiências concretas. Uma realizada/em realização e outra a se concretizar.
A primeira delas foi a minha atuação como historiador junto à comissão diocesana em Uberlândia para memória e bens culturais da Igreja, o que se desdobrou em minha participação no conselho do Museu de Arte Sacra desta mesma diocese. A segunda é relacionada a uma demanda que me apareceu de um centro budista de linhagem dos Himalaias, atuante na cidade, para um trabalho relacionado com artes marciais chinesas.
Nos dois casos, tanto a promoção da cultura e da arte sacra quanto a prática de artes marciais se inscrevem, de alguma forma, à missão cristã, no caso da Igreja Católica, ou à preparação para a meditação e para o autoconhecimento "interno", no caso desta linhagem budista em particular. Para a universidade laica, nem a evangelização, nem o dharma, como forma mais ou menos explícita de proselitismo, interessam. Pelo contrário, qualquer tipo de propaganda religiosa seria, no mínimo, um risco ao princípio da laicidade. No entanto, interessa à universidade a cultura religiosa como elemento importante da vida social e os seus artefatos são testemunhos materiais, portanto, de alto valor, inclusive, para pesquisas acadêmicas e ações educativas. De modo análogo, interessa à universidade o estudo de metodologias de ensino-aprendizagem, de fruição cultural e de empoderamento social no âmbito da educação não-escolar. Aspectos muito presentes no trabalho que pretendemos realizar junto ao centro budista que nos procurou.
A guisa de conclusão, o ponto central deste texto é alertar para o perigo de empobrecimento cultural e de exclusão de grupos significativos da sociedade circundante quando a universidade se fecha, de modo inflexível, ao acolhimento de pessoas e ações religiosamente motivadas. A laicidade, como um dos princípios da universidade pública brasileira, não deveria significar a exclusão de atores religiosos dos meios a partir dos quais os seus objetivos podem se realizar. O que ela deve significar, a todo custo e sem concessões, é a separação saudável entre ciência e pseudociência, entre fé doutrinal e racionalidade científica, entre educação e proselitismo. Ela também deve significar a recusa pelo pensamento único e o reconhecimento do pluralismo como aspecto que denota a complexidade e a riqueza da sociedade brasileira contemporânea.