Religião, Cultura e História (1): A questão da diversidade.                 Drª Eliane Moura da Silva

31/07/2017

Religião, Cultura e História (1): A questão da diversidade.


Somos diversos. Esta verdade fundamental é sempre ameaçada por ações individuais e coletivas de intolerância. Somos diversos historicamente, etnicamente, linguisticamente e, da mesma forma, somos diversos religiosamente.

A diversidade religiosa é profunda. Ela existe entre ateus e religiosos, entre formas distintas de religião (entre cristãos e budistas), entre ramos religiosos com pontos em comum (como judeus e muçulmanos), entre expressões internas de uma mesma religião (católicos carismáticos e adeptos da teologia da libertação) e mesmo entre expressões geográfico-históricas da mesma fé (católicos espanhóis e católicos norte-americanos).

Em nenhum período da História houve uma única religião em todo o Mundo, como também nunca foram dominantes as atitudes de tolerância no passado daquilo que chamamos modernamente de religiões.

A associação entre Estado e Igreja é uma dessas formas de intolerância, não deixando, por isso mesmo, uma boa lembrança. A imposição de uma fé como oficial e a consequente exclusão dos outros (inclusive com perseguições declaradas) deixou seu rastro perverso no passado. No presente, muitos conflitos continuam sendo alimentados a partir de convicções ou sob a justificativa de crença, como vemos no Oriente Médio ou Europa.

Observando tais conflitos, a defesa da absoluta separação entre Estado e Igrejas é um valor muito importante. Neste sentido, a defesa feita pelos filósofos iluministas, consagrada nas emendas da Constituição dos EUA e repetida por liberais e muitos pensadores dos séculos XX e XXI é fundamental. Esta liberdade deve incluir também a liberdade de não-crença, da expressão de ateísmos, agnosticismos ou da simples indiferença frente aos valores religiosos.

Além disso, é importante lembrar que as religiões são parte importante da memória cultural e do desenvolvimento histórico de todas as sociedades.

Ora, o respeito à diversidade é um dos valores mais importantes do exercício da cidadania, como não podemos esquecer. Só neste respeito absoluto podemos entender que não existem seitas (pois não existem grandes e pequenas religiões), não existe sincretismo (pois não existe uma religião pura de influências de outras) e, acima de tudo, não existe para o historiador ou para o filósofo uma religião melhor do que outra. Cada uma colaborou com uma parte do pensamento religioso; cada uma expressa uma visão de um grupo e cada uma teve e tem seu valor específico, exatamente por serem diferentes. As religiões fazem parte da aventura humana.

Estudar historicamente movimentos e pensamentos religiosos implica em discutir teoricamente as formas possíveis de abordagem, dentro de uma área de estudos que vem crescendo e construindo seus próprios referenciais.

Desde meados do século XIX, sob influência do orientalismo, da filologia, da linguística comparada, os estudos de História das Religiões ganharam impulso nas Universidades, surgindo daí importantes reflexões teóricas sobre o tema. Em MaxMuller (Essay on Comparative Mythology, 1856), encontramos os marcos que mostram o surgimento de um campo específico de estudos e pesquisas sobre temas religiosos. Esses marcos oferecem pistas para se chegar às chamadas "estruturas específicas" dos fenômenos religiosos e foram desenvolvidos a partir de um interesse preferencial pelo contexto histórico e pela decifração e apresentação da história de movimentos, indivíduos ou instituições religiosas propriamente ditas.

Mas foi com outro historiador, chamado MirceaEliade, que a questão sagrado/profano ganhou seu estatuto teórico e intelectual mais marcante. Para ele, o fenômeno do sagrado em toda a sua complexidade não comporta apenas o aspecto irracional. O fenômeno do sagrado não é apenas a relação entre o racional e o não racional, mas sim uma experiência de totalidade. Eliadepropôs uma História das Religiões a partir da análise das hierofanias, ou seja, das "coisas onde o sagrado se manifesta". Contudo, esta forma de considerar a questão acabou por levar a uma redução da história e das culturas, prevalecendo uma visão mitológica e simbolista.

Estas abordagens conduziram para o campo da fenomenologia religiosa e da filosofia da religião, onde a religião passou a ser vista como um fenômeno universalmente humano, o que transformou as diferentes religiões, simplesmente, em manifestações diversas de uma única faculdade humana. Desse modo, as religiões poderiam ser analisadas e classificadas em torno de uma unidade ordenada, uma "essência religiosa" comum a todas as sociedades e culturas.

Existem, porém, algumas correntes de pensamento que não aceitam trabalhar com definições genéricas e atemporais, como religião ou sagrado nem com a ideia da existência de uma essência religiosa comum a todas as religiões. Ou seja, para algumas correntes historiográficas é impossível pensar no conceito Religião como uma categoria atemporal e genérica. As crenças religiosas só podem ser definidas, interpretadas e estudadas como situações históricas e culturais específicas e não podem, por exemplo, trabalhar com conceituações que só têm sentido na tradição religiosa cristã ou judaico-cristã, alertando, inclusive, para o fato de que existem crenças extra-religiosas, sobretudo nas sociedades ocidentais contemporâneas.

Desse modo, apesar da sua extrema variedade, aquilo que identificamos como religiões, fenômenos religiosos ou religiosidades, aparecem em diferentes sociedades e contextos como um tipo característico de esforço criador que procura colocar ao alcance da ação e compreensão humanas tudo o que é incontrolável e sem sentido, procurando conferir um valor e significado para a existência das coisas e seres.

Este é o objeto específico da perspectiva de estudos da História Cultural das Religiões e que só é alcançado de maneira satisfatória se tiver uma perspectiva comparada para compreender de que maneira se formam, histórica e culturalmente, as religiões e movimentos religiosos, em todas as suas complexidades relacionais, temporais, sociais, culturais, políticas, étnicas, de gênero, geracionais. E, acima de tudo, sempre em mudança.

Para estudar a história dos fenômenos religiosos, portanto, é preciso ficar atento aos usos e sentidos dos termos que, em determinada situação, geram crenças, ações, instituições, condutas, mitos, ritos, etc.

Além disso, pensar o religioso também pode ser colocado no domínio da História Cultural que tem, o objetivo central de identificar a maneira através da qual, em diferentes tempos e lugares, uma determinada realidade social é construída, pensada e lida. Representações do mundo que aspiram à universalidade são determinadas por aqueles que as elaboram e não são neutras, pois impõem, justificam e procuram legitimar projetos, regras, condutas, etc.

Desta forma, uma abordagem teórica preliminar para o estudo das religiões, do pensamento religioso, das formas de religiosidade em geral, é aquela que leva em conta a historicidade dos fenômenos religiosos construídos em variados aspectos e matizados na sua complexidade histórico-cultural.

É fundamental definir, de forma conceitual e metodológica, religião como uma categoria de análise ampla o suficiente, para estudarmos a Modernidade. Isso será apresentado no próximo texto.


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