O trabalho do historiador e a salvaguarda dos documentos paroquiais e civis
Prof. Dr. Carlos André Silva de Moura
Professor do Departamento de História da Universidade de Pernambuco - UPE
Coordenador do Laboratório de Estudos da História das Religiões - LEHR
[...] mesmo que a história fosse julgada incapaz de outros serviços, restaria dizer, a seu favor, que ela entretém (BLOCH, 2001, p. 43).
Em várias visitas aos arquivos com documentação da Igreja Católica, tenho deparado com pesquisadores, profissionais ou não, em busca de informação sobre batismo, casamento ou óbito de algum personagem. Após várias buscas, semanas dedicadas à consulta de diversos espólios, documentos perdidos, muitos saem das instituições sem as informações necessárias e com dúvidas sobre os motivos de não ter encontrado o documento.
Nas últimas décadas, os cientistas sociais têm tido acesso a um maior número de instituições que realizam a salvaguarda das documentações históricas. O material tem contribuído para o desenvolvimento de pesquisas na área da História, Sociologia, Antropologia, dentre outros campos de estudos. Os processos de digitalização e democratização da consulta ao material têm contribuído para o trabalho não apenas dos acadêmicos, mas também de um grupo de indivíduos que buscam informações sobre o passado.
Entre os diversos exemplos de documentações, os registros paroquiais e civis têm sido bastante procurados por historiadores e genealogistas que buscam informações sobre famílias, dados demográficos, redes sociais ou para a construção de biografias. Tais fontes são fundamentais, por exemplo, para a comprovação de parentescos para efeito de heranças ou obtenção de cidadania, uma vez que com elas é possível elaborar uma narrativa familiar.
Os registros paroquiais e civis, como as certidões de batismo, casamento, registro de nascimento ou óbito, permitem desvendar o passado brasileiro não só de uma perspectiva demográfica, mas também sociocultural, com as suas relações de poder (BASSANEZI, 2013, p. 142 - 143). Durante o período colonial e parte do império, os registros dos ritos de passagem (batismo, casamento ou óbito) realizados pelos membros da Igreja Católica eram os únicos reconhecidos legalmente, constituindo-se em uma elaboração religiosa com efeito civil.
Foi durante o Concílio de Trento (1560 - 1565) que o registro de batismo e casamento se tornou obrigatório. A partir de 1614, com a publicação da Rituale Romanum, elaborado pelo Papa Paulo V, a Igreja Católica estendeu a obrigatoriedade ao registro de óbito. As normatizações instituídas pela hierarquia da Cúria romana colaboraram com a reafirmação da característica cartorial da instituição, métodos já realizados em períodos como a Idade Média.
A partir de 1707, as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, também seguindo as determinações do Concilio de Trento, estabeleceram as normas e a obrigatoriedade dos registros para o Brasil (ARQUIDIOCESE DE SALVADOR, 1853). Com as determinações do documento, as notas religiosas serviam de base legal para as relações civis, especialmente, antes da separação entre o Estado e a Igreja, referendada a partir do Decreto 119 - A, publicado em 07 de janeiro de 1890 (BRASIL, Decreto 119-A).
O registro civil de nascimento foi criado pelo império brasileiro a partir do Decreto n.º 5604, de 25 de abril de 1874 (BRASIL, 1974), proposta realizada pelo deputado João Alfredo Correia de Oliveira (1835 - 1919). Apenas a partir de 1875, algumas cidades iniciaram a criação dos cartórios de registro civil, tendo a Cidade do Recife o seu primeiro estabelecimento criado em 1888. Anteriores a estas datas, parte das tentativas do poder civil de registro da população não foram bem aceitas. Em 1851, membros da população do Recife se levantaram no movimento conhecido como Guerra dos Marimbondos (1851 - 1852), contrária à obrigatoriedade do registro civis dos nascimentos e óbitos, que se constituía como uma etapa da realização do Censo Geral do Império. Pautados nos boatos de que o decreto tinha o objetivo de escravizar os homens livres e pobres, muitos indivíduos da região se negaram a atendem as determinações (ABI-RAMIA, A Guerra dos Marimbondos). Sendo assim, em anos seguintes alguns pais evitaram realizar o registro dos seus filhos como forma de resistência as imposições governamentais, especialmente, devido aos receios relativos à escravização.
Mesmo com as determinações legais estabelecidas pela Igreja Católica, e posteriormente o Estado, a garantia do registro da população era relativa. Deve-se destacar que tal questão não retira a importância dos registros paroquiais ou civis, uma vez que a sua manutenção garantiu os apontamentos de todos os setores da sociedade. Para Maria Silvia Bassanezi, "homens e mulheres, ricos e pobres, brancos, negros e índios, nacionais e estrangeiros, filhos legítimos e ilegítimos / naturais, crianças expostas ou enjeitadas e também escravos e libertos (antes de 1888) tiveram (e têm) os seus eventos vitais registrados" (BASSANEZI, 2013, p. 142). No entanto, para o período analisado, a constatação do registro de indivíduos de todos os grupos sociais não significava a abrangência de toda a população.
Especificamente para o Brasil, deve-se destacar que "[...] os registros para as pessoas livres e de camadas sociais mais elevadas, consideradas "gente mais importante", eram mais cuidados, completos e precisos [...]", diferente dos realizados para os "[...] cativos ou pessoas livres das camadas mais inferiores [...]" (Idem, p. 147), que em muitos casos eram realizados com descuido. Do mesmo modo, também deve-se considerar os batismos realizados nas residências dos recém-nascidos, sem a presença de um representante do clero, que em muitas oportunidades as informações não eram transferidas para uma documentação formal (MARCÍLIO, 2004).
Mesmo que o Rituale Romanum apresente um modelo para realização do registro do batismo, com a marcação do nome do nascido, dos pais e dos padrinhos, a prática não era efetivada para os indivíduos de todas as camadas sociais. Durante o século XIX, para as camadas menos favorecidas, como "as pessoas de cor", "geralmente o batizado aparece registrado apenas com o prenome" (BASSANEZI, 2013, p. 149). Para a legislação eclesiástica, as informações obrigatórias para o batismo eram: a data do batismo, o nome completo do batizando, sua filiação (quando fosse conhecida), local da residência de seus pais ou responsáveis, nome de um padrinho e a assinatura do sacerdote.
Sendo assim, inicialmente a falta de um documento histórico que ateste o batismo / nascimento de um indivíduo pode ser atribuída a questões como: 1. A personagem em questão ter sido batizada em casa sem o devido registro em uma paróquia; 2. Devido a sua condição social, os dados apresentados sobre a recém-nascida foram incompletos, fato que dificulta encontrar informações nos arquivos das paróquias; 3. Mesmo com as obrigatoriedades da lei a partir de 1874, as famílias podem não ter realizado o batismo ou registro civil, como aconteceu com vários indivíduos de camadas sociais menos favorecidas ou residentes em localidades afastadas dos centros urbanos.
Alinhada a tais questões de ordem privada, sobre a dificuldade de se encontrar uma documentação que comprove a existência do batistério ou registro civil, também consideramos a situação das instituições que salvaguardam este tipo de fonte. Na maioria das vezes os fundos não possuem catalogação ou inventários que possam nortear a busca dos investigadores, independente da experiência arquivística do interessando (BASSANEZI, 2013, p. 165).
Para os documentos de cunho eclesiástico, muitos livros estão armazenados nas paróquias, nos arquivos das catedrais ou nas diversas Cúrias Metropolitanas. Devido à descentralização das fontes, a ausência de investimentos para a sua conservação, a ação do tempo, o ataque de insetos e a falta de especialização dos funcionários que trabalham com o material, vários livros de registros dos ritos de passagem "simplesmente desapareceram ou se encontram em mau estado de conservação", fato que impossibilita as consultas ou a identificação do registro (Idem).
Alinhado aos pontos levantados, deve-se lembrar das transformações administrativas sofridas pela Igreja Católica no Brasil durante o século XX (MOURA, 2018). Com o processo de laicização e secularização do Estado, assim como o fim do padroado, o clero reestruturou as suas divisões geográficas com o desmembramento de várias dioceses, a exemplo da Arquidiocese de Olinda. Sendo assim, a cada criação de um novo espaço eclesiástico as documentações foram transferidas para as novas paróquias, causando a dispersão ou destruição de documentos em mal estado de conservação (MARCÍLIO, 2004, p. 17).
Devido às ações dos fatores elencados acima, boa parte das documentações religiosas do período colonial e imperial brasileiro se perdeu ou está impossibilitado de consulta. Até o momento, poucos arquivos paroquiais foram restaurados, o que dificulta um trabalho apurado sobre determinados nomes na História. Em 2019 a Arquidiocese de Olinda e Recife apresentou a sociedade o restauro e conservação de parte da documentação do Arquivo Dom José Lamartine, com a salvaguarda das fontes, espaços para a pesquisa de investigadores e propostas de novos projetos. A direção da instituição também realizou uma parceria com a direção da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, que realizou a digitação das fontes e disponibilizou o material na internet.
É consenso entre os historiadores que as narrativas históricas não são construídas apenas a partir de uma fonte. As interpretações dos eventos podem ser conduzidas pelo cruzamento de um conjunto de documentos, que podem nos apresentar uma história que é impossível de ser visualizada do modo como se passou. Mesmo que os livros de batismo, casamento ou óbito com as informações de algum indivíduo não tenham sido encontrados nas instituições eclesiásticas visitadas, outros documentos, como a certidão de nascimento de filhos, podem atestar a atuação histórica do personagem, o local de nascimento, além da construção de uma rede familiar registrada em órgãos governamentais reconhecidos pelas diversas instâncias do Estado.
Referências
ABI-RAMIA, Jeanne. A Guerra dos Marimbondos. Disponível em <https://www.multirio.rj.gov.br/index.php/leia/reportagens-artigos/artigos/9737-guerra-dos-marimbondos>. Acesso em, 10 mar. 2018.
Arquidiocese de Salvador. Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo: Na Typ. 2 de Dezembro de Antonio Louzada Antunes, 1853. Disponível em <https://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/222291>. Acesso em, 08 mar. 2019.
BASSANEZI, Maria Silvia. Registros Paroquiais e Civis. Os eventos vitais na reconstituição da História. In. PINSKY, Carla Bassaneri; LUCA, Tania Regina de. O Historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2013.
BLOCH, Marc. Apologia da História ou o Ofício de Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
BRASIL. Câmara dos Deputados. Decreto n.º 5604, de 25 de março de 1874. Disponível em <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-5604-25-marco-1874-550211-publicacaooriginal-65873-pe.html>. Acesso em, 10 mar. 2018.
______. Presidência da República. Decreto n.º 119 - A. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/D119-A.htm>. Acesso em, 09 mar. 2019.
MARCÍLIO, Maria Luiza. Os registros paroquiais e a História do Brasil. Vária História, nº 31, p. 13 - 20, jan. 2004.
MOURA, Carlos André Silva de. Histórias Cruzadas: intelectuais no Brasil e em Portugal durante a Restauração Católica (1910 - 1942). Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2018.Click here to edit...