O "Silêncio" de Martin Scorsese: alteridades e possibilidades para uma História Cultural das Religiões.
Profº Harley Abrantes Moreira

Escrever uma resenha sobre o filme "Silêncio", dirigido por Martin Scorsese, é desafiante, sobretudo pela quantidade de temas importantes que levanta e que não poderiam ser tratados em um único texto. Baseado no livro de Shusako Endo "O Silêncio"(1967), o filme narra a experiência dramática dos missionários jesuítas portugueses e das comunidades cristãs clandestinas do Japão do século XVII, período de perseguição religiosa onde as autoridades japonesas desenvolveram uma cultura de tortura, com métodos próprios que tinham por finalidade punir exemplarmente os cristãos que insistiam em plantar a semente do cristianismo no solo pantanoso do império do sol nascente.
A trama central se dá em torno da notícia sobre o padre Cristóvão Ferreira, mentor e importante referência na ordem jesuítica portuguesa e que, após alguns anos em seguida à sua partida para a missão evangelizadora no Japão, teria apostatado da fé e passado a viver segundo os costumes japoneses, o que envolvia a mudança de religião e o casamento com uma esposa local.
A notícia chocara seus discípulos Sebastião Rodrigues e Francisco Garupe que partem em busca do mestre e da confirmação de tão perturbadora possibilidade. Chegando em seu destino, os padres vivenciam o dramático confronto entre o universalismo e o altruísmo. Dois valores presentes em suas cosmovisões cristãs e que naquele contexto, são apresentados como desesperadoramente conflitantes! Afinal, a crença na ideia de que as verdades do cristianismo são válidas para qualquer cultura fortaleceu o espírito desses religiosos que foram obrigados a presenciar a tortura e a execução de diversos camponeses, submetidos a tal martírio afim de que os missionários jesuítas renunciassem publicamente à sua fé para livrar os pobres japoneses de tamanha punição. O amor e a responsabilidade pela vida dos sacrificados, debate contra as convicções religiosas que, até então, moldaram suas identidades e maneiras de compreender o mundo e a si mesmos.

As transformações sofridas pelos personagens ajudam a pensar nas diferentes experiências de interculturalidade que podem ocorrer dentro de um campo missionário, pondo em cheque as leituras bilaterais mais comuns na interpretação desse tipo de choque cultural entre o cristão ocidental e o pagão nativo, onde a monotonia do resultado final reserva para o missionário o papel de "destruidor" de culturas, restando às populações locais a posição de vítimas da história. A observação do filme, ao contrário, leva-nos a imaginar a existência de infinitas posições entre um extremo e outro, compreendendo que as transformações vivenciadas no interior de uma zona de contato cultural podem ser imprevisíveis, multidirecionais e que, apesar das desigualdades entre as partes envolvidas, podem ser, também, menos verticais do que se costuma supor.
Esse tipo de situação não foi exclusividade dos jesuítas portugueses no Japão do século XVII e, amplamente documentada na história das missões cristãs, também pode ser observada na experiência do missionário protestante norte americano Frank Laubach (1884-1970) que decidiu, na década de 1930, alfabetizar e evangelizar os mouros muçulmanos. Na ocasião, o mesmo teria ouvido Deus dizer-lhe que seu próprio senso de superioridade estava bloqueando seu ministério e que ele precisava amar os mouros como Deus os amava. Ao final de sua missão, a transformação vivenciada por esse missionário o teria levado a concluir que a evangelização poderia ser uma forma de empoderamento contra o racismo e, mais maduro, reconheceu que o exclusivismo racial dos ocidentais criou um fardo de hipocrisia que prejudicou a disseminação do evangelho.
A história da América e de seus contatos interculturais também é rica em exemplos. O dominicano Bartolomeu de Las Casas (1484-1566), no que pese as discussões que envolvem as diversas fases de sua rica biografia, ainda jovem deixou a Espanha movido pela fé na missão de converter os ameríndios e, anos mais tarde, elaborou as ideias do que Tzevetan Todorov chamou de "perspectivismo" no seio da religião, afirmando a necessidade de reconhecer que os Deuses indígenas eram tão verdadeiros para eles quanto o Deus cristão era verdadeiro para os espanhóis.
Por sua vez, as histórias das missões cristãs no continente africano também oferecem paralelos para pensar em transformações variadas ocorridas em zonas de alteridades. Entre eles, é particularmente notável o caso do missionário presbiteriano suíço Henri Junoud (1863-1934) que, enquanto jovem estudante de Teologia escreveu uma tese (1885) sobre a "Santidade Perfeita de Jesus Cristo" e que, a partir do final do século XIX, ao chegar na África Austral para evangelizar os povos do sul de Moçambique e da África do Sul, aos poucos revelou um profundo interesse científico pelas culturas nativas, passando a desenvolver estudos antropológicos que, posteriormente, foram reconhecidos como clássicos de um gênero que alguns autores chamaram de "Antropologia Missionária".
No caso dos jesuítas portugueses no Japão do século XVII, a trama central da produção de Scorsese se dá em torno do processo vivido pelo padre Rodrigues que, após sua apostasia, viveu quatro décadas no país e, assim como seu mentor, também adotou um novo nome e uma esposa japonesa concedida pelas autoridades locais. Durante esse período, Rodrigues foi obrigado pelas desconfiadas autoridades a assinar diversas declarações renegando sua fé cristã. Segundo o diretor, o autor do livro quis, com isso, sugerir que, em seu íntimo, o padre jamais abandonou completamente sua fé, compreendida no filme como algo profundamente pessoal. As quatro décadas nas quais cumprira todas as formalidades que testemunhavam sua apostasia e o pequeno crucifixo que em segredo segurava ao morrer, colocavam em questionamento uma das últimas frases do filme, a saber: "o homem que um dia foi Rodrigues, morreu como eles queriam: perdido para Deus"!

Outra forma de reagir às circunstâncias de uma zona de contato intercultural foi a sofisticada operação de reelaboração realizada pelo padre Ferreira. As transformações pelas quais passou apresenta um outro lugar entre as duas posições do sistema bilateral já referido. Após ter escrito um livro denunciando os equívocos da fé cristã, o ex-padre dava ao seu ex-discípulo Rodrigues seu testemunho de que, finalmente, após quinze anos de fortes conflitos pessoais, sentira-se em paz e satisfeito por poder contribuir naquela cultura através dos serviços prestados no templo budista. As tarefas que realizava não por obrigação, mas por prazer, só tornaram-se possíveis após ter descoberto que entre o budismo e o cristianismo havia relevantes compatibilidades, entre elas, a mais importante seria a prática de amor ao próximo, o que nos abre a intrigante possibilidade de imaginar que aquele ex-jesuíta teria, à sua maneira, encontrado uma forma de ser cristão dentro do budismo.

Essas adaptações e transformações multidirecionais em zonas de alteridades nos permitem questionar ainda se os camponeses mortos naquele sistema de tortura cruelmente criativo podem ser considerados legítimos mártires cristãos, ou se a piedade desses homens e dessas mulheres que, mesmo após a conversão cristã, continuaram frequentando os templos budistas era, na verdade, uma reinvenção japonesa do catolicismo? Como afirmar, para essa pergunta, qualquer resposta apenas a partir dos sinais externos de algo tão íntimo? Esses e tantos outros questionamentos são possibilidades trazidas por esse grande filme que, agora, promete ser também uma ferramenta útil a pesquisadores/as e educadores/as interessados/as na relação entre cinema, história e religião.
LIVROS E ARTIGOS CONSULTADOS:
HARRIES, Patrik. Junod e as Sociedades Africanas: Impacto dos Missionários Suíços na África Austral. Maputo: Paulinas, 2007.
ROBERT, DANA L. Cros-Cultural Friendship in the Creation of Twentieth-Century World Christianity.Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/239693931103500208. Acesso em: 01/03/2016.
TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: A questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
REFERÊNCIAS DAS IMAGENS
Figura 1: https://br.web.img2.acsta.net/pictures/16/12/20/13/08/103918.jpg
Figura 2: https://terrornosofa.files.wordpress.com/2017/09/maxresdefault.jpg
Figura 4: https://d2zfkpu1r6ym98.cloudfront.net/sites/guideposts.org/files/story/silence-05276_r.jpg