O Día de Muertos no México: a Invenção de uma Festa Nacional.
Por Plínio Felipe Amaral Pires[i].

Primeiro de Novembro. Prepara-se a Ofrenda para os que já partiram: um altar com frutas, pan de muerto, doces, tamales; predileções, como bebidas ou cigarros; e objetos pessoais. Uma trilha, geralmente em forma de cruz, com as pétalas da Flor de Muertos (Cempasúchil) guia a alma dos finados para que cheguem até o altar decorado com velas, santos, calaveras e fotos pessoais. No dia seguinte, todos visitam o cemitério. Nos túmulos, se dispõem alimentos e bebidas que trazem à memória aqueles que já partiram. Momento de tristeza que alguns tentam apaziguar com uma garrafa de tequila ou canções dos mariachis, que servem sua voz e instrumentos por alguns pesos; mas também de alegria, que se reflete nas barracas de pipoca doce, nas crianças que brincam e correm, nas calaveras de azúcar, nos balões e nos desenhos dos papéis picados que enchem o ambiente de sabor e cores. Contudo, entre todas essas contraposições, o que realmente se destaca é o afeto e a comunhão familiar que são celebrados pelas luzes e explosões dos fogos de artifício.
Os diversos e exóticos elementos que constituem o famoso Día de Muertos mexicano, declarado como Patrimônio Imaterial da Humanidade pela UNESCO (2003), parecem torná-lo uma festa única e exclusiva. Esse discurso é constantemente reforçado pelas agências de turismo, pelas mídias e, em igual dose, pelo governo mexicano. Para compreender como ele se elaborou é necessário, primeiramente, perguntar-se quando e porque acontece essa celebração.
O Día de Muertos se realiza segundo o calendário católico. O primeiro de novembro é o Dia de Todos os Santos, momento em que se deve atender missa em homenagem aos santos da Igreja. Sua origem data de 13 de maio de 609, quando o papa Bonifácio IV consagrou o Panteão romano à Santa Maria e aos mártires; com Gregório III (837) ele passou para o dia que conhecemos hoje. Já o segundo é o Dia dos Fiéis Defuntos (Dia dos Finados, no Brasil) e remonta ao século X, quando o abade Odilon de Cluny designou um dia específico para os mosteiros de sua ordem (beneditinos) se dedicarem à oração aos finados; hábito que começou a se universalizar somente no século XIV. Hoje, ele é um momento para lembrar-se daqueles que já partiram e rezar pelos que estão no Purgatório - onde expiam seus pecados veniais- esperando pelo Paraíso.
Desse modo, esse período é importante para a maioria dos católicos, não só os mexicanos. Na América Central e algumas regiões ao sul - com destaque para os Andes - também se preparam belos altares com velas, flores, tumbas ornamentadas, cruzes esculpidas e se preparam Ofrendas com pães como o pan de muerto mexicano, tamales, doces e bebidas alcoólicas (chicha, colada morada etc.). Contudo, ainda que profundamente enraizadas no calendário e na vida religiosa de muitos católicos, essas celebrações têm incorporado cada vez mais elementos do Halloween norte-americano. Em nenhum lugar, essa incorporação é mais facilmente observável que na Cidade do México. Com o Nafta (1994), as companhias norte-americanas, tais como a Hallmark (de miscelâneas para feriados), encontraram amplo espaço para competição: entre outubro e novembro, período das vendas para o Dia de Muertos, as calaveras de azúcar compartilham as lojas e as ruas com doces em laranja e preto, as fantasias de bruxas e demônios com estátuas de santos, desenhos de Jack o'lantern com La Catrina etc.
Esse encontro se explica não apenas pelos acordos comerciais, mas também pelo crescente intercâmbio cultural (Hollywood, redes sociais etc.) entre os vizinhos do norte e o regresso de mexicanos ao país. Assim, além de ser o tema de anúncios publicitários e das festas à fantasia em discotecas e bailes, o "Jalouín", estrangeirismo já bastante recorrente no México, também chega aos lares mexicanos pelos chicanos ou pela crescente geração de "filo-americanos". Já é comum, e não apenas no dia 31 de outubro, as crianças saírem pelas ruas, fantasiadas ou não, para pedir doces ou algum trocado. No lugar do conhecido "trick or treat" elas usam: "Dónde está mi calaverita?" ou mesmo "Dónde está mi Halloween?". Já em outras situações a interpenetração dos feriados é mais perceptível: doces e adornos de Halloween nas Ofrendas e nos altares ou o uso de Jack o'laterns para iluminar os túmulos durante as vigílias do dia 1 de novembro.
Segundo alguns intelectuais, políticos e jornalistas mexicanos, o Halloween estaria corrompendo a autenticidade de uma festa que faz parte da tradição e da identidade nacional. No período pós-revolucionário (após os anos 1920-30), artistas como Diego Rivera se empenharam em descrever o que seria a identidade mexicana e o que tornaria o México, senão excepcional, diferente dos outros países. Essa missão era igualmente uma tentativa de se diferenciar dos Estados Unidos: sua inveterada imposição econômica e política no território repercutiu significativamente nas análises que os mexicanos produziram sobre si mesmos. Talvez a manifestação mais conhecida (e aplaudida) seja El laberinto de la Soledad, conjunto de ensaios de Octavio Paz sobre a identidade do povo mexicano. No ensaio "El Pachuco y Otros Extremos", o mexicano se define pela sua diferenciação ("Ellos" e "Nosotros") com o norte-americano: "Ellos son crédulos, nosotros creyentes; (...) Los mexicanos son desconfiados; ellos abiertos. Nosotros somos tristes y sarcásticos; ellos alegres y humorísticos (...) Son activos; nosotros quietistas: disfrutamos de nuestras llagas como ellos de sus inventos. Creen en la higiene, en la salud, en el trabajo, en la felicidad, pero tal vez no conocen la verdadera alegría, que es una embriaguez y un torbellino".
Já em "Todos Santos, Día de Muertos", Paz afirma que um dos pontos que caracteriza o mexicano é sua relação com a morte. Analisando o Día de Muertos, ele afirma que: 'Para el habitante de Nueva York, París o Londres, la muerte es la palabra que jamás se pronuncia porque quema los labios. El mexicano, en cambio, la frecuenta, la burla, la acaricia, duerme con ella, la festeja, es uno de sus juguetes favoritos y su amor más permanente (...) la contempla cara a cara con impaciencia, desdén o ironía: "si me han de matar mañana, que me maten de una vez"'. A figura "do mexicano" como aquele que desdenha a morte, a fita sem temor, a encara estoicamente, já encontrava seus primeiros contornos nas pinturas de Rivera. Contudo, é só nos trabalhos de intelectuais da segunda metade do século XX, com destaque para Octavio Paz (que ganhou o Prêmio Nobel de literatura por El Laberinto de la Soledad, em 1990), que essa imagem ecoa internacionalmente.
Com o exponencial aumento de turistas interessados em testemunhar essa especial relação com a morte, o governo passou a incentivar a celebração do Día de Muertos ao longo do país. Tzintzuntzan (Michoacán), por exemplo, até a década de 1970, costumava comemorá-lo modesta e reservadamente: pequenos altares familiares e pontuais visitas ao cemitério. Dez anos depois, como em outras regiões do sul e centro do México, o número de turistas, estações de televisão e outros observadores já superava o de habitantes locais. Para satisfazer as expectativas românticas, o governo começou a intervir para que não se alterassem as celebrações. Por exemplo, as vigílias noturnas nos cemitérios de Tzintzuntan deviam continuar à luz de tochas, recusando o pedido dos celebrantes por energia elétrica. Assim, o Estado não "criou" o Día de Muertos, mas ele o institucionalizou, estabeleceu o "modo mexicano" de celebrá-lo.
Essa institucionalização do Día de Muertos é um projeto com múltiplos e sofisticados dispositivos que tem se espalhado por toda República mexicana. Nas escolas, se ensinam os costumes do Día de Muertos; nas universidades, se realizam concursos para eleger a melhor calavera literária e o melhor altar; governos municipais, comerciantes e associações de moradores financiam desfiles, festas e atrações artísticas etc. A repetição anual dessas práticas lhes atribui um valor simbólico e ritual, elas fazem os mexicanos sentirem-se unidos, se identificarem em torno de uma tradição comum e nacional. Para o historiador Eric Hobsbawm, esse conjunto de práticas constituem uma "tradição inventada". Esta geralmente busca estabelecer a continuidade com um passado histórico que se apropria.
A figura histórica que intermedia a identificação entre os mexicanos e um passado comum é o indígena, mais especificamente a etnia mexica ("asteca") - grupo que habitava o Vale do México, político-economicamente hegemônico no tempo da Conquista. Enquanto a gênese dos Estados Unidos estava na Europa, nos puritanos ingleses, o México procurava manifestar o orgulho de uma origem nativa e guerreira. Com o avanço da cultura norte-americana - e o Halloween - intelectuais de caráter nacionalista passaram a ressaltar a singularidade do Día de Muertos mexicano como a sobrevivência das tradições astecas - "los antiguos mexicanos" (Octavio Paz) - nas celebrações católicas. Assim, a particular reação estóica e burlesca frente à morte também se explicaria pela conservação da crença asteca de continuidade entre a vida e a morte nos traços mexicanos.
Com a identificação do povo mexicano ao passado histórico asteca, o Estado exclui, ou ao menos secundariza, o papel de outros grupos (indígenas) da formação de uma identidade nacional. Do mesmo modo, a institucionalização de um modelo de Día de Muertos como tradição nacional implica em uma hierarquização político-cultural do país. Os costumes da região do Vale do México assumem um caráter nacional, enquanto outros, como os da Península de Yucatán, onde se festeja o Hanal Pixán ("Comida de las ánimas") de raízes mayas, são definidos apenas como variações da celebração oficial. Essa obliteração da noção de pluralidade do Día de Muertos fica ainda mais evidente se se leva em consideração que ele também é uma data celebrativa para os mexicanos e chicanos do Texas, Arizona, Califórnia e Novo México. Diferente do sul da fronteira, o Dia de Muertos chicano trata-se mais de uma reivindicação política, identitária e artística em um país estrangeiro.
Deve-se reiterar que falar em "tradição inventada" não quer dizer que o Estado "criou" o Día de Muertos e o "impôs" aos mexicanos - documentos nos informam que sua celebração remonta ao período colonial. Contudo, até os anos 1950, ele não fazia parte da vida da maioria das pessoas, pois estas associavam-no aos grupos populares ou supersticiosos. Foi somente com a repercussão internacional de uma identidade mexicana e o projeto de elevá-lo a uma festividade nacional que os mexicanos passaram a vê-lo como uma tradição própria e vinculado a um passado indígena. Como vimos, as avaliações nacionalistas geralmente abominam a presença de qualquer cultura estrangeira - como o Halloween - nessa tradição: ela deve permanecer inalterada, imutável como uma peça de museu, pois isso afetaria sua autenticidade. Esse tipo de pensamento - presente não só no México, mas em qualquer lugar diante de encontros culturais - negligência que a noção de uma tradição nacional é uma produção político-cultural que não apenas acarreta na obliteração da pluralidade de "representações concorrentes" de Día de Muertos, mas que, como no feitiço que vira contra o feiticeiro, só existe a partir do momento em que institucionaliza tradições e as altera.
SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS
- BRANDES, Stanley. Skull to the Living, Bread to the Dead: The Day of the Dead in Mexico and Beyond. Oxford, Blackwell Publishing: 2006.
- HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). A Invenção das Tradições. São Paulo, Paz e Terra: 1997.
- MARCHI, Regina M. Day of the Dead in the USA: The Migration and Transformation of a Cultural Phenomenon. New Jersey, Rutgers University Press: 2009.
- PAZ, Octavio. El Laberinto de la Soledad. México, Fondo de Cultura Económica: 1999.
REFERÊNCIAS DAS IMAGENS:
https://www.cityexpress.com/blog/los-elementos-de-un-altar-de-muertos-y-su-significado

[i] Plínio Felipe Amaral Pires é mestrando no Programa de Pós-Graduação de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (Unicamp-IFCH) e membro do Centro de Estudos em História Cultural das Religiões. E-mail: plinioamaral@msn.com.
Currículo lattes: https://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K8404700J1