O Catolicismo mexicano para além da Virgem de Guadalupe: os “santos” da Narcocultura 

28/08/2017

UZUN, Júlia Rany Campos Uzun

A América Latina tem enfrentado muitos problemas estruturais nas últimas décadas. O aumento do desemprego, da violência, da corrupção e da poluição são alguns deles. O México tem sentido alguns desses problemas mais profundamente, com o desenvolvimento de uma grande rede de narcotraficantes que, nos últimos anos, tem travado confrontos diretos com os governantes e tornado a população muito vulnerável. Dessa forma, a população do país tem perdido a confiança nas principais lideranças e instituições do país. Uma das principais forças do México sempre foi a Igreja Católica. No entanto, a religião dominante - que tem como a Virgem de Guadalupe e São Judas Tadeu seus principais ícones no país - vem sentindo um grande declínio em seu número de fieis, que estão se voltando para cultos religiosos diferenciados, buscando atender a suas necessidades espirituais e terrenas. Muitos grupos partiram para a descoberta de religiões pentecostais. No entanto, o que mais cresce no México é a reapropriação dos elementos católicos para o universo da narcocultura. Essa expressão deu origem a dois grandes cultos: o da Santa Muerte e o de Jesús Malverde.

Sem dúvida, o maior símbolo da ressignificação do Catolicismo mexicano é a Santa Muerte - ou, como preferem seus milhões de devotos, Nossa Senhora da Santa Morte. Conhecida como a protetora de todos os tipos de viventes na marginalidade e perpetradores de delinquência, ela tornou-se a figura de devoção dos homens e mulheres que se sentem negligenciados pela sociedade. Sua imagem pode ser representada de diversas formas, trazendo sempre as mãos e a face de um esqueleto envolta em um rico manto, personificando a própria morte e trazendo a justiça, a proteção e simbolizando a segurança no caminho entre a vida e o outro lado. Sua versão mais comum é aquela em que aparece vestida de noiva.

Existem muitas versões para as origens do culto à Santa Muerte. A mais aceita dentre todas elas é que houve uma reapropriação do culto asteca a Mictlantecuhtli, o deus da morte e senhor do reino dos mortos, que se assemelharia à divindade maia Ah Duch, representado com um corpo em decomposição e uma cabeça quase como uma caveira, decorada com colares de penas ossos e sinos. A representação do deus asteca trazia um esqueleto completo ou, pelo menos, sua cabeça em forma de caveira. Para manter sua ira aplacada, os astecas enviavam-lhe diversos presentes muito suntuosos, como pés de homens mortos para cobrir seus ossos já sem peles. Neste processo de reapropriação - ainda pouco estudado - alguns atributos da figura de Nossa Senhora, protetora dos oprimidos, teriam sido unidos a outros desta divindade pré-hispânica guardadora do submundo, dando origem a uma "santa" responsável por guardar os homens nesta e na outra vida.

De acordo com o pesquisador Andrew Chesnutii, ainda que a existência desta entidade remonte a tradições bastante antigas, o enorme crescimento de seu culto - que o transformou no que mais cresce em toda a América Latina no século XXI - tem bases oficiais apenas a partir da virada do milênio. Na última década, o culto à Santa Muerte alcançou cerca de 7 milhões de fiéis no México e quase 12 milhões em todo o mundo. O culto a Santa Muerte já chegou às Filipinas, ao Japão e à Austrália, de forma espontânea - visto que não existe um sistema organizado de crenças, de instituições nem de lideranças carismáticas. A explosão da sua popularidade em terras mexicanas acompanhou o desenvolvimento dos carteis do narcotráfico, que desde 2006 vêm confrontando diretamente o governo. A violência no país em decorrência do narcotráfico, especialmente nas zonas de fronteira com os Estados Unidos, alcança cerca de 80 mil mortes ao ano, fazendo com que a identificação popular com a Santa Muerte seja cada vez maior - e a ligação da entidade com a narcocultura, também. Afinal de contas, quem seria mais eficaz para garantir um pouco mais de tempo em vida do que a própria morte?

Se a procedência do culto à Santa Muerte é algo envolto em mistério, suas práticas atuais não ficam atrás. A partir de meados da década de 1960, o culto contemporâneo à Santa Muerte teve início no estado mexicano de Hidalgo, associando-se à criminalidade, à violência, à narcocultura e à prostituição. Até o princípio dos anos 2000, celebrar a Santa Muerte era considerado como uma atividade clandestina. Os devotos criavam santuários pessoais dentro de suas casas e as imagens deveriam manter-se escondidas. O primeiro santuário público à Santa Muerte foi aberto por Enriqueta Romero, em 2001, na Cidade do México. O bairro escolhido foi Tepito, conhecido por seus mercados e também pela marginalidade de seus habitantes, fazendo com que a região ganhasse a fama de ser uma das mais perigosas da capital. Este templo acelerou a expansão de novas casas em homenagem à Santa Muerte, que se espalharam não só por todo o território mexicano mas também pela América Latina e por vários centros dos Estados Unidos que detêm grandes comunidades latinas.

Seus devotos possuem um perfil comum, segundo Chesnut: são jovens com menos de 30 anos, oriundos de áreas menos favorecidas e, na grande maioria das vezes, possuem algum envolvimento com a narcocultura - tanto que ela é considerada como a protetora dos traficantes de drogas e dos envolvidos em qualquer tipo de crime. Não são católicos estritos, mas também não são ateus. Eles ressignificam diariamente seus códigos, ícones e condutas religiosas para nutrir suas existências, construindo suas práticas e identidades a partir de uma série de reapropriações do Catolicismo. Nesse sentido, a Santa Muerte permitiria que eles continuassem com suas atividades violentas e ilegais, visto que não os julgaria e garantiria o perdão por seus atos na vida eterna. Cabe ressaltar que, além de uma santa de devoção, ela também é considerada como uma entidade capaz de fazer trabalhos espirituais para seus fieis. Segundo Steven Bragg, líder de uma igreja de Santa Muerte em Nova Orleans, é possível orar para sua padroeira pedindo auxílio e orientação (como para qualquer outro santo católico), mas também existe a possibilidade da realização de rituais específicos - com velas, oferta de alimentos, rezas e até sangue - caso o fiel deseje a ajuda ou o favorecimento da Santa junto ao que ele chama de "forças sombrias". Um exemplo comum destes rituais são os sacrifícios humanos realizados pelos narcotraficantes para a Santa Muerte em troca de proteção contra os policiais, tornando a população bastante vulnerável à violência cotidiana.

De certo modo, este aspecto sombrio permite que as pessoas sintam-se mais confortáveis para pedir favores à Santa Muerte que jamais rogariam à Virgem de Guadalupe ou a outros santos católicos. Se Guadalupe é a mãe protetora pura que para quem o fiel pede saúde, cuja imagem é colocada no centro de mesa, a Santa Muerte é aquela para quem contamos nossos segredos mais escondidos e pedimos aquilo que nós mesmos temos vergonha de assumir que desejamos. Desse modo, ela tornou-se também a defensora de outro grupo que sofre muito marginalizado no México e na América Latina: a comunidade LGBT. Com frequência rejeitados por outros grupos religiosos, os membros dessa comunidade encontram nessa figura a compreensão para viver livremente sua sexualidade dentro da religião - visto que a morte não discrimina ninguém. Ela vem para todos.

Santa Muerte pode ser a figura mais conhecida de culto da narcocultura, mas não é a única. Todos os anos, no dia 03 de maio, uma capela da cidade mexicana de Culiacán fica lotada para a celebração da vida e o pagamento de promessas a Jesús Malverde, considerado um narcossanto mexicano, que tem sua imagem honrada com presentes, cigarros e bebidas alcoólicas.

O surgimento do culto a Jesús Malverde, tal como o da Santa Muerte, também segue envolto em mistério. Alguns estudiosos defendem que Malverde é apenas um mito, enquanto outros acreditam que ele foi um homem que viveu no começo do século XX. A principal versão aceita é que o nome verdadeiro de Jesús Malverde era Jesús Juárez Maço. A lenda diz que o jovem trabalhou como minerador sob as ordens do general Francisco Canedo, governador do estado de Sinaloa, e começou a ver as injustiças feitas aos trabalhadores. Ao confrontas o governador e dizer-lhe que a forma como tratava a população não estava correta, o jovem Malverde foi para o açoite por ordens de Canedo. A surra teria sido tão forte que ele foi dado como morto e jogado ao rio, mas foi resgatado por locais.

A partir de então, nasceu seu ódio contra os ricos e ele tornou-se um bandido que se tornou famoso durante o governo de Porfirio Díaz por roubar dos mais ricos e da Igreja para dar dinheiro aos menos favorecidos - uma espécie de releitura de Robin Hood nas terras mexicanas. Ele recebeu este apelido de seus inimigos por usar folhas de bananeira como disfarce. Um dia, enquanto fugia dos soldados do governador, ele adoeceu e foi encontrado em uma caverna. Em 3 de maio de 1909, ele foi capturado pelas autoridades e enforcado, tendo seu corpo deixado ao ar livre para apodrecer em praça pública, como exemplo.

Logo nos anos seguintes à sua morte, a figura de Malverde ganhou reputação pública por garantir alguns favores para homens de moral duvidosa, especialmente para criminosos. Sua ligação com a narcocultura teve início quando o filho de um poderoso líder do tráfico, Raymundo Escalante, sobreviveu a um atentado após ter sido levado à Capela de Malverde para conseguir se recuperar. Com a identificação moral dos narcotraficantes e o reconhecimento da "cura" realizada, Jesús Malverde tornou-se, assim, o santo protetor dos narcotraficantes.

O culto a Jesús Malverde conta com três grandes igrejas no mundo. A maior de todas localiza-se em Culiacán, no estado mexicano de Sinaloa, ao norte do país. Foi construída em 1969 e fica a menos de um quarteirão da sede do governo do estado. A segunda está no município colombiano de Cali, enquanto a terceira fica em Los Angeles, nos Estados Unidos. Há poucos anos, a Cidade do México ganhou uma pequena capela para o culto ao narcossanto, fundada por Alicia Pulido, no bairro central de Los Doctores, recebendo pouco a pouco milhares de seguidores da região. Em todos os templos, existe uma imagem do "patrono dos narcotraficantes" em tamanho natural em um pequeno santuário envidraçado - um homem com as características tradicionais do norte do México, com estatura mediana, pele branca, bigodes e cabelos escuros, grossos e em abundância. Ele veste uma camisa jeans típica, um chapéu, um cinto de pele de cobra com uma fivela dourada e um pingente com uma pistola no pescoço. Ao seu redor, ficam os diversos presentes trazidos pelos fieis - que vão de notas de dinheiro a bebidas. Do lado de fora dos templos, sempre existe uma imagem de São Judas Tadeu, santo reconhecido pela Igreja Católica e o segundo mais cultuado em todo o México (atrás apenas da Virgem de Guadalupe), conhecido como o padroeiro dos desesperados e das causas impossíveis - legitimando o culto a Malverde.

A festa anual a Jesus Malverde ocorre na capela de Culiacán, a partir das 9 da manhã, todo dia 3 de maio. Seus devotos ajoelham-se no altar da igreja e lavam as mãos e o rosto do santo com água benta. Muitas bandas mexicanas se revezam durante o dia todo, tocando música típica do norte do país. A bebida servida é a cerveja gelada. Ao chegar ao meio-dia, a imagem de Malverde é tirada da igreja e colocada em uma caminhonete pintada em homenagem ao santo. Dali, ela parte para uma procissão liderada pelo guardião da igreja e pelos devotos que levaram as maiores oferendas. No caminho, o busto é molhado com água benta e uísque. Também recebe todo tipo de oferendas e carícias. Ao retornar à igreja, a festa continua. A quantia arrecadada durante todo o ano é utilizada para a compra de comida e bebida para os participantes e, ao final, uma rifa é sorteada em prol dos moradores de bairros marginalizados de Culiacán, com brinquedos para as crianças e caixas de alimentos.

A Igreja Católica não reconhece a Santa Muerte oficialmente como santa - pelo contrário, a instituição se manifesta com frequência como contrária ao movimento que a celebra - exatamente pela apropriação de seus conceitos religiosos para a justificação de práticas violentas. O mesmo ocorre com o posicionamento da instituição em relação a Jesús Malverde. Em 2013, o então presidente do Conselho Pontifício do Vaticano para a Cultura, cardeal Ravasi, condenou o culto à Santa Muerte e a Malverde, afirmando ser uma blasfêmia contra a religião cristã. Publicamente, os fiéis da entidade são rotulados como praticantes de algum tipo de satanismo por lideranças cristãs de todo o México, visto que as camadas mais tradicionais olham para a Santa Muerte e a Jesús Malverde como um instrumento de determinados grupos para desencaminhar os homens desesperados.

Cabe ressaltar que os fieis não reconhecem Malverde como um criminoso. Para eles, nem a Santa Muerte nem Malverde são narcossantos - ambos são apenas figuras de devoção porque fazem milagres para os menos necessitados, atendem aqueles que têm fé e que são ignorados pela sociedade. Os narcossantos ocupam um lugar social vazio na América Latina que é o do cuidado dos marginalizados - se o Catolicismo tradicional não consegue abarcar as necessidades destes grupos e auxiliar em suas práticas cotidianas, eles passam a buscar outros movimentos religiosos que olhem mais para a intenção de suas almas e menos para a ilegalidade de suas práticas. O que lutam é pela salvação eterna e a não-condenação terrena - e, para isso, os narcossantos surgem como uma resposta a calhar. 


i Júlia Rany Campos Uzun é aluna de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em História Cultural da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP, tendo defendido seu mestrado em 2013 pela mesma Universidade. Também é pesquisadora convidada do Colegio Mexiquense de Toluca - México. Atualmente, é membro da gestão coordenadora do Centro de Estudos em História Cultural das Religiões - CEHIR e desenvolve pesquisas com temáticas ligadas à educação, religião, gênero, Catolicismo no Brasil e identidade. Contato: professorajuliahistoria@yahoo.com.br 

ii Andrew Chesnut publicou o primeiro estudo acadêmico acerca do culto à Santa Muerte. Em "Devoted to Death: Santa Muerte, the Skeleton Saint", ele discute a história do culto à Santa Muerte, mostrando como ela se tornou uma das principais figuras de celebração religiosa no México e a padroeira dos traficantes de drogas.

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