MARTIN LUTHER KING 50 ANOS DEPOIS: HISTÓRIA, MEMÓRIA E REPRESENTAÇÕES

07/08/2018

Por Harley Abrantes Moreira

O dom de cativar e inspirar as platéias - revelado e aperfeiçoado nos púlpitos dos templos batistas do sul do país - transformou um movimento político-social numa jornada de elevação espiritual para milhões de negros americanos.

Revista Veja. Abril de 1968.dit...

Ao chegar na UNICAMP em 2015 para iniciar meu doutorado em História Cultural das Religiões, uma brisa de acolhimento e identificação parecia romper com a sensação de ser um estrangeiro em território sem referências. É que acabava de me deparar com uma placa de uma das ruas mais movimentadas do Campus cujo nome era "Martin Luther King Jr." O logradouro onde eu estava era apenas mais um dos mais de quarenta com o mesmo nome espalhados pelo Brasil e, na ocasião dos cinquenta anos do assassinato do grande líder negro na luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, chama-nos a atenção as representações culturais e a construção de sua memória em nosso país ao longo de meio século onde intervenções foram realizadas, biografias de King foram escritas, lidas, reconstruídas em documentários e lembradas por movimentos negros ou de combate ao racismo tupiniquim. Nesse âmbito, é muito comum encontrar textos de blogueiros que o apresentem como a principal liderança na jornada épica e inacabada do povo negro norte americano pela conquista da igualdade racial, vencedor do prêmio Nobel da Paz em 1964, destacável também por sua rejeição à violência através dos métodos de resistência pacífica.

Ocorre que essa grande personalidade do século XX era também um pastor batista (assim como seu pai e seu avô materno) formado no seio da vibrante tradição das congregações negras americanas, apontadas algumas vezes como as principais forças articuladoras na luta por direitos de negros e negras na história recente dos Estados Unidos, ainda que a maioria dos evangélicos brasileiros não dê sinais de conhecimento de sua mensagem ou de engajamento no que poderia ser o seu legado. Esse pressuposto, aliás, pode ser investigado e, uma vez confirmado, poderia gerar a indagação acerca de seu motivo, pois tratando-se de uma referência mundial tão expressiva e por vezes transformada em ícone pop, seria legítimo esperar por um maior conhecimento de sua mensagem e uma evocação de sua pessoa como referência identitária para evangélicos em geral e batistas em particular.

No que pese a existência de estudos historiográficos que apontem correlações entre os primeiros batistas americanos a migrarem para o Brasil na segunda metade do século XIX e o então recém extinto escravagismo norte americano, pode-se conjecturar que a predominância do desinteresse pela figura de King entre os membros de sua denominação religiosa em nosso país, um século depois, se explique em razão de ouras hipóteses, como o fato do mesmo nunca ter sido um evangelista e sim um ativista e que, enquanto teólogo identificado com o evangelho social, não fez do "ide, pois; de todas as nações fazei discípulos, batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo," (Mt:28:19) seu maior encargo, o que pode ter o colocado em posição oposta a muitos de seus irmãos que acreditavam ser esta a verdadeira, única e exclusiva missão da igreja. Outra suposição válida é que talvez sua figura não fosse adequada para o status de grande influenciador dos evangélicos brasileiros por ter importado suas ideias de resistência pacífica de um hinduísta, Mahatma Gandhi e, nesse conjunto de suspeições, é preciso considerar ainda que suas concepções de desobediência civil todas as vezes em que o Estado não estivesse em comunhão com a justiça (o que teria lhe rendido 14 prisões, além de diversas agressões policiais), também não parece ter ajudado a consolidar sua memória enquanto exemplo para a religião que há alguns anos é a que mais cresce no Brasil. Apesar disso, não seria correto afirmar que sua figura foi ignorada no espaço do amplo e tão diverso mundo evangélico brasileiro.

Na década de 1960, o movimento sócio cultural Diretriz Evangélica, fundado cerca de vinte anos antes no intuito de constituir um meio de intervenção social, manteve diversas atividades como programas radiofônicos, colunas em O Jornal Batista e um periódico próprio onde eram publicados textos sobre Martin Luther King e sobre direitos humanos. Esse material ainda pode ser pesquisado, assim como a repercussão da visita de um grupo de pastores negros pertencentes à "Convenção Batista Nacional de Cor" ou "Convenção Batista dos pretos", organização de pastores negros norte-americanos, surgida no bojo do desenvolvimento da Teologia Negra influenciada por King, chegando a ser considerada a segunda maior convenção batista do mundo e que, em 1967, enviava representantes ao Brasil à propósito da campanha de evangelização das Américas que resultava no intercâmbio entre diversos pastores do continente americano.

Na ocasião de seu assassinato, a luta de representações em torno daquele que já foi chamado de "a voz do século" parecia revelar a existência de uma disputa entre diferentes visões de mundo que antagonizavam o processo de significação de sua vida como um fato histórico dentro do âmbito batista nacional. Nesse sentido, um texto era publicado no principal jornal da denominação chamando a atenção para a legitimidade dos ideais do pastor King que, segundo o autor, não lutara "apenas" por igualdade racial, e sim por justiça em seu sentido mais amplo! Tal texto fora rebatido em edições seguintes, onde registrou-se uma opinião contrária à boa reputação que o editorial parecia imputar ao líder negro descrito por outros articulistas como um "visionário a menos" cujo prestígio deveria ser minimizado.

No fim do mesmo ano, o Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil, localizado na cidade do Rio de Janeiro, celebrava a formatura da "Turma Martin Luther King Jr.", ocasião em que o então estudante Darcy Duzilek fez um discurso fundamentado nas ideias e ações de King. Segundo Jorge Nery de Santana em dissertação de mestrado defendida em 2010 na Universidade Estadual de Feira de Santana, no mesmo ano a III Conferência Mundial da Juventude Batista realizada nos Estados Unidos discutia problemas pautados pelo ativista social como a Guerra do Vietnã, a pobreza e o ódio racial. O observador brasileiro à altura era o jovem estudante Valdemiro Chimchak que emprestava seu relatório às páginas de O Jornal Batista destacando a intervenção de um pastor de nacionalidade alemã que, ao pedir a palavra em assembleia, proferiu a seguinte frase: "Eu me envergonho de me apresentar como batista perante a sociedade em que vivo e onde procuro servir meu Senhor por causa da atitude de vocês, batistas do sul, com relação ao problema racial."

Na década de 1970, o principal veículo de informação dos batistas brasileiros chegou a apresentar timidamente algumas poucas matérias que nos oferecem a oportunidade de medir os silêncios e os sinais de construção da memória de Martin Luther King no seio de sua denominação religiosa no Brasil. A predominância desse desinteresse é rompida quando em 1999, por iniciativa da diretoria do Seminário Teológico Batista do Nordeste, foi organizado o I Encontro Batista Brasileiro sobre Racismo (ENBRASOR) onde King e seus ideais se articulavam ao tema central do evento que, segundo Juciane Cerqueira de Souza, não pareceu encontrar ressonância mais concreta no público evangélico e batista mais amplos.

Permanecendo nessa vereda, na primeira década do século XX, destacou-se a criação do Centro de Ética Social Martin Luther King Jr. do Brasil com sede na cidade de Salvador que, segundo entrevista cedida por seu coordenador à Revista Ultimato por ocasião da memória dos 40 anos do assassinato de King em 2008, tinha a missão de "apoiar a pesquisa, a reflexão, o treinamento, a comunicação e a práxis relacionadas à justiça social, pobreza, racismo, sexismo, meio ambiente, violência urbana, saúde, educação e direitos civis e humanos em geral".

Essas iniciativas (e outras que ainda merecem verificação) apontam para a existência de meio século de construções da memória de Martin Luther King Jr entre frestas escondidas dentro de um amplo e diversificado protestantismo brasileiro, podendo ser investigadas enquanto representações culturais que, segundo Roger Chartier, "aspiram à universalidade, mas são sempre determinadas pelos interesses dos grupos que as forjam", podendo revelar não apenas as nuances de religiões tantas vezes caricaturadas, mas suas concorrências internas, seus embates protagonizados por diferentes coletividades com distintas cosmovisões, assumindo suas tarefas de construir representações de mundo a partir de seus próprios ícones, erguidos como totens que impõe aos concorrentes sua própria concepção de mundo social indicando a existência de diferentes identidades e identificações oque, no caso de King e seus irmãos brasileiros, marcavam a tensa convivência entre os tambores da paz e da justiça e as consolidações de silêncios ensurdecedores.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

CARSON, Clayborne. (Org.) A Autobiografia de Martin Luther King. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2014.

CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Berthrand Brasil, 1990.

HALL, Stuart. Identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP &A, 2005.

ALMEIDA, Fábio Py Murta. Lauro Bretones, Um Protestante Heterodoxo no Brasil de 1948 a 1956. Rio de Janeiro, PUC, 2016.

SANTANA, Jorge Luiz Nery de. Práticas e Representações Étnicas nas Narrativas Religiosas dos Batistas em Feira de Santana (1947-1988). Feira de Santana-BA. UEFS, 2010.

SILVA, Elizete da. Os Batistas no Brasil. In: ALMEIDA, Vasni; SANTOS, Lyndon Araújo; SILVA, Elizete da. Fiel é a Palavra: Leituras Históricas dos Evangélicos Protestantes no Brasil.Feira de Santana, UEFS Editora, 2011.

SOUZA, Juciane Cerqueira. A Repercussão da "Voz do Século" (Martin Luther King) Entre os Batistas em Feira de Santana. Anais eletrônicos do IV Encontro Estadual de História - ANPUH-BA História: Sujeitos, Saberes e Práticas. Vitória da Conquista-BA, 29 de Julho a 1° de Agosto de 2008.

FONTES DOCUMENTAIS CONSULTADAS

BARRETO, Raimundo César. O Sucesso da Não Violência. Revista Ultimato. Viçosa/MG. Ano XLI, nº312. p.51. Maio-Junho/2008.

BÍBLIA. Português. Tradução Ecumênica da Bíblia (TEB). São Paulo, Edições Loyola, 1995.

MARTIN Luther King Jr., Apóstolo da Paz, morto pela violência. O Jornal Batista, Rio de Janeiro, n. 15, p. 1, abr. 1968.

MARTIN Luther King: um problema teológico. O Jornal Batista, Rio de Janeiro, n. 33, p. 8, ago. 1968.

VISIONÁRIO, Luther King? O Jornal Batista, Rio de Janeiro, n. 27, p. 2, jul. 1968.

Harley Abrantes Moreira é graduado em História pela Universidade Federal do Ceará (UFC) (1995-2000); Mestre em História Cultural dos Espaços, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) (2007-2009), na linha de pesquisa: Cultura, Poder e Representações Espaciais; seu doutorado é em História Cultural pela Universidade de Campinas (UNICAMP) (2015-) na linha de pesquisa: Historiografia, Religiões e Cultura. É professor do curso de História da Universidade de Pernambuco (UPE) na unidade Petrolina. Atualmente encontra-se em período de afastamento para o doutoramento, desenvolvendo a pesquisa "Missões Batistas Lusófonas em Moçambique: Entre Alteridades e Colonialismos Culturais (1950-1992)". 

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