Identidade Cristã e Missão em Sociedades Pluralistas: Uma perspectiva do Sul.

20/11/2017

Identidade Cristã e Missão em Sociedades Pluralistas: Uma perspectiva do Sul.[1]

Por Jesudas M. Athyal[i]

Uma das características do período moderno é a degradação gradual das fronteiras comunitárias tradicionais sob o impacto da modernização. Os movimentos renascentistas e humanistas dos últimos dois séculos proporcionaram uma sensação de história e consciência dos direitos das pessoas. A mobilidade intercomunitária através da qual as pessoas marginalizadas poderiam avançar na escala social e econômica - o que M. N. Srinivas chamou de Sanskritisation - tornou-se, finalmente, uma realidade. No entanto, nas sociedades tradicionais, como as da Índia, as fronteiras comunais, consolidadas ao longo de vários séculos, especialmente sob a forma de hierarquia de castas e preconceitos de castas, continuam a se manter em formas diferentes, lado a lado com os valores humanistas modernos de igualdade e dignidade humana. Embora a coexistência do tradicional e do moderno assegure uma certa continuidade com a mudança, a rigidez das antigas estruturas e a rapidez das mudanças que ocorreram lançaram novos desafios diante das comunidades modernas. Nós chamamos isso de a Crise de Identidade que a sociedade enfrenta hoje.

Os termos identidade e missão discutidos brevemente neste artigo precisam ser explicados. A identidade é um termo sociológico que denota a autocompreensão de um indivíduo ou de uma comunidade. Nas sociedades tradicionais, o status e o papel das pessoas eram determinados, em grande parte, em relação aos seus agrupamentos comunitários, que eram baseados em religião, raça, casta ou gênero. Embora no âmbito das relações intracomunitárias dessas comunidades, a mobilidade em certa medida fosse possível, a rigidez das fronteiras comunitárias restringia fortemente qualquer mobilidade intercomunitária significativa. Quando nos voltamos para a história do cristianismo, vemos que o pluralismo religioso era a identidade da Igreja Primitiva. O mandato da Igreja foi o seguinte: "Vós sereis minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judéia e Samaria e até os confins da terra" (Atos 1: 8). A Igreja Primitiva compreendia este mandato em relação às filosofias e culturas greco-romanas. Durante os primeiros séculos a Igreja manteve essa ligação orgânica entre a fé e o contexto. Quando, no entanto, a Igreja se moveu para o oeste, a sociedade do cristianismo ocidental era diferente e a Igreja desenvolveu um ethos imperial, expansionista cruzadista. Este foi um desvio da tradição mais autêntica da autocompreensão cristã. A identidade da Igreja como um braço da cultura ocidental cruzadista se manteve na maior parte do mundo, mesmo muito depois do colapso do colonialismo.

Uma breve revisão do movimento missionário moderno, que era dominante nos séculos XVIII e XIX, é necessária neste contexto. Qual foi o impacto da era missionária? Qual papel desempenhou no testemunho cristão? Quais são as lições para nossos dias? Estas estão entre as várias questões levantadas nos nossos tempos. O foco dos teólogos no hemisfério sul é muitas vezes sobre os "efeitos devastadores" do movimento missionário sobre povos e culturas indígenas. O Conselho Mundial de Igrejas iniciou há alguns anos um processo de estudo para rever "como as discussões sobre o evangelho e a cultura foram realizadas dentro da história do movimento ecumênico moderno, a fim de descobrir as diferentes facetas dos debates e os pressupostos que governaram a discussão". As discussões ecumênicas sobre o evangelho e a cultura se concentram em uma crítica do impacto missionário no mundo não-ocidental, principalmente a partir da perspectiva dos povos indígenas.

É necessário acrescentar que o movimento ecumênico geralmente reconhece o papel dos "missionários individuais" que trabalharam altruistamente para o crescimento das pessoas. Estes eram missionários que tentavam descobrir o significado do evangelho em culturas específicas. No entanto, em geral, a avaliação do movimento ecumênico é que a empresa missionária como um todo minou as culturas locais no mundo não-ocidental. Por conseguinte, uma das características da nova autoconfiança das Igrejas emergentes do terceiro mundo era a rejeição do padrão missionário. Uma boa proporção do pensamento teológico atual em missões também promove a concepção de que o movimento missionário não era um pouco mais do que o "imperialismo em oração". Existe, de fato, um relativo consenso entre os historiadores da Igreja e os teólogos ecumênicos de que o movimento missionário em geral ajudou e encorajou o processo de conquista cultural e política do mundo não-ocidental nos últimos dois séculos.

A perspectiva subalterna hoje, no entanto, questiona a leitura hegemônica da era missionária. A contribuição dos missionários em tradução, renovação vernácula e mudança social é uma realidade histórica. Talvez a contribuição mais significativa na Índia fosse romper a sanção espiritual de casta. O fervor espiritual criado pela educação ocidental e o renascimento das religiões tradicionais, ambos intimamente associados ao período missionário, contribuíram, talvez mais do que qualquer outro fator, para a reforma social e o consequente despertar e humanização das comunidades marginalizadas.

Embora reconhecendo as enormes contribuições dos missionários, é importante notar que os teólogos subalternos não consideram a era missionária como uma benção indistinta. O foco geral do movimento era levar as pessoas a renunciar às suas respectivas afiliações religiosas e se tornarem cristãs. Supunha-se que a forma que o cristianismo tomara no ocidente era normativa para todas as sociedades. Essas críticas têm enorme relevância no contexto atual do neocolonialismo caracterizado pelo processo de globalização e pela universalização da cultura ocidental.

A era missionária, como todas as outras fases da história da Igreja, será cuidadosamente examinada e julgada por suas contribuições e deficiências. Esse processo histórico, embora inevitável, não pode ser baseado apenas na história dada. Historiadores e teólogos, como todos os outros, são filhos de seus tempos. À medida que a história se estende para acomodar as pessoas subalternas, as perspectivas de missão também mudam. Nesse contexto, a era missionária precisa ser revisada não apenas na perspectiva de certas seções privilegiadas, mas também do ponto de vista das pessoas marginalizadas. Como Lamin Sanneh nos diz: "Os missionários ocidentais forneceram algumas das categorias mais importantes para a compreensão do encontro intercultural, seja ou não tal encontro adaptado aos seus motivos e intenções ou de outras maneiras tenha ocorrido para o seu crédito". Tanto as intenções como as consequências do movimento missionário tornam-se igualmente importantes para nós.

Não é, portanto, apoiando inteiramente nem condenando a história da era missionária, mas através de uma revisão crítica desse período, especialmente da perspectiva das vítimas da história, que uma teologia da missão verdadeiramente cristã representativa de todas as pessoas pode evoluir. Tal exercício tem uma enorme relevância contemporânea. O contexto sócio-político hoje está sobrecarregado com ascensão do fundamentalismo religioso e ataques às comunidades minoritárias. Os setores racistas e xenófobos têm expelido suas inibições e assumido lugar central na etapa de re-definição da história de nosso planeta, ameaçando seu tecido secular e social. Em tal contexto, a autenticidade da comunidade cristã e a relevância de sua teologia serão julgadas pela sua sensibilidade ao contexto social da Igreja.

SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS

ARIARAJAH,S. Wesley. Gospel and Culture: An On going Discussion with in the Ecumenical Movement. Geneva: WCC, 1995. 

PHILIP, T.V. Edinburgh to Salvador (Twentieth Century Ecumenical Missiology): A Historical Study of the Ecumenical Discussionson Mission. Tiruvalla: CSS & ISPCK, 1999.

SANNEH,Lamin. Encountering the West: Christianity and the Global Cultural Process: The African Dimension. Maryknoll: Orbis Books, 1993.


[1] Tradução de Plínio Felipe Amaral Pires.


[i]Jesudas M. Athyal é pesquisador visitante da Boston University School of Theology, Center for Global Christianity and Mission. Ele trabalha também para a Fortress Press como um editor de aquisições nas áreas de Teologia Sul-Asiática e Teologia Ecumênica. É co-autor de Understanding World Christianity - India (Fortress Press, 2016), editor de Religion in Southeast Asia: An Encyclopedia of Faiths and Cultures (Santa Barbara, CA: ABC-CLIO, 2015) e editor associado de Oxford Encyclopedia of South Asian Christianity - 2 vol. (New Delhi: OUP, 2012).

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