As igrejas evangélicas brasileiras e o golpe de 1964: algumas reflexões.

17/07/2017

Rui Luis Rodrigues[1]

As posições assumidas pelas denominações evangélicas (e, dentro delas, por diferentes grupos e instâncias) diante do golpe militar de 1964 não é assunto que se pretenda abordar de forma conveniente num espaço reduzido como este. Evocar o acontecimento e os impactos provenientes dele, no entanto, é tarefa necessária e que mereceria maior atenção por parte de todos nós. Nosso objetivo neste texto não será tanto o de mapear os diferentes posicionamentos e reações (trabalho que vem sendo realizado, não de forma exaustiva, por diferentes pesquisadores), mas principalmente o de entender os principais mecanismos por trás das ações e omissões praticadas pelas igrejas evangélicas.

É consenso, entre os pesquisadores, que lideranças das principais denominações cristãs - Igreja católica inclusa - proveram sustentação ao golpe militar, ora de forma ostensiva, ora recorrendo ao silêncio. Isso não ocorreu de forma homogênea; houve setores que se mantiveram resistentes e lideranças que, pelo exercício da oposição, experimentaram diferentes níveis de repressão.[2] Mas um posicionamento favorável ao golpe encontrou maiores facilidades para medrar do que as atitudes de resistência. Isso se explica pelo verdadeiro embate ideológico que se desenvolveu, na década precedente, no interior dos grupos denominacionais brasileiros.

Bastante disseminados ao longo do território nacional em meados do século XX, os grupos evangélicos caracterizavam-se, grosso modo, por uma penetração nos segmentos médios da sociedade. Por outro lado, o ideário básico desses grupos vinculava-se ao chamado "protestantismo de missão", de origens anglo-saxônicas: uma herança religiosa de matiz pietista, caracterizada pelo conservadorismo comportamental e onde a experiência religiosa era pensada, sobretudo, em termos de conversão individual. Essa herança, todavia, era então vivida num país marcado por acelerado crescimento demográfico e, por conta do súbito desenvolvimento industrial, caracterizado por extrema desigualdade em termos sociais.

A chegada ao Brasil, em 1952, do reverendo presbiteriano Richard Shaull, norte-americano com passagem prévia pela Colômbia, foi decisiva para o início de uma significativa mudança no ambiente das igrejas evangélicas não-pentecostais.[3] Convidado a dar aulas no Seminário Presbiteriano do Sul, em Campinas/SP, o reverendo Shaull, que estivera em contato com as principais correntes de renovação do pensamento teológico na primeira metade do século XX, tornou-se catalisador de uma atividade teológica crítica e estimulante. É preciso ter em mente que, a essa altura, o ensino teológico brasileiro limitava-se à repetição dos velhos manuais de teologia sistemática, em especial o de Louis Berkhof (publicado em 1933) e o de A. H. Strong (de 1907). Em seminários como o de Campinas os estudantes passaram, graças aos esforços de Shaull, a ser encorajados a pensar no evangelho como força social decisiva, com um papel a desempenhar fora do âmbito restrito dos templos.

A Confederação Evangélica do Brasil, fundada em 1934, contribuiu para amplificar e difundir as inquietações que surgiam no seio das lideranças evangélicas mais jovens. Inicialmente muito ligada aos moldes da cultura anglo-saxônica, a Confederação apercebeu-se, ao longo da década de 1950, da necessidade de dar rosto a um protestantismo mais preocupado com a realidade brasileira. O mesmo pode ser dito da União Cristã de Estudantes do Brasil, organizada em 1926 com o nome de União de Estudantes para o Trabalho de Cristo e que adotou a nova nomenclatura em 1940. As inquietações dos estudantes, em especial, não eram bem recebidas pelas lideranças denominacionais. A par de um preconceito generalizado, nas igrejas evangélicas, contra a formação universitária - as Universidades eram vistas, tradicionalmente, como centros propagadores de incredulidade, por conta inicialmente da difusão do pensamento positivista e, depois, do marxismo -, havia a inevitável dificuldade, por parte das lideranças mais idosas, de perceberem com a mesma intensidade dos jovens as tensões que se multiplicavam na sociedade.

Um processo dessa natureza já seria, por si só, bastante complexo; no caso brasileiro, contudo, o quadro foi agravado pela polarização ideológica então vivida no mundo.

O contexto era o da "guerra fria" entre o ocidente, liderado pelos Estados Unidos da América, e os países do bloco comunista. Dentro dos Estados Unidos, vivia-se nos anos 1950 o período da chamada "caça às bruxas" promovida pelo senador McCarthy, onde uniam-se conservadorismo (político, social e religioso) e antissemitismo numa verdadeira histeria, marcada por denúncias, cassações de vistos de permanência e mesmo expulsão formal de artistas e intelectuais acusados de simpatizarem com o comunismo. No Brasil, o ambiente da nascente cultura de massa era dominado pelas produções musicais e cinematográficas norte-americanas, o que facilitava a absorção desse ideário.

Não demorou para que, no contexto norte-americano, o clima de histeria gerasse sua perfeita contrapartida religiosa. O International Council of Christian Churches (ICCC, aqui conhecido como Concílio Internacional de Igrejas Cristãs ou CIIC), fundado em 1948 e planejado como uma resposta ao Concílio Mundial de Igrejas (CMI) cuja primeira assembleia ocorrera no mesmo ano, em Amsterdam, procurou reproduzir, em âmbito religioso, a polaridade política desenhada pelos ideólogos da "guerra fria". Os paralelos são óbvios: na perspectiva do CIIC, o "mundo livre" tinha sua correspondência nos fundamentalistas dessa instituição, enquanto o Concílio Mundial de Igrejas deveria ser visto como braço do movimento comunista internacional.

A acusação colocava sob suspeita toda a iniciativa ecumênica que, como sabemos, tivera início na famosa Conferência de Edimburgo (1910) e não era em absoluto uma estratégia comunista. Aliás, se o Concílio Mundial de Igrejas era culpado de algo, naquele contexto, talvez fosse de ser europeu demais, encontrando-se bastante inserido nas formas de ser e de pensar a igreja e a teologia que eram típicas do protestantismo europeu. O estranhamento que isso causava nos anglo-saxões, e especialmente nos norte-americanos, com sua tradição mais pietista, menos magisterial e menos convencida da utilidade (e necessária liberdade) da reflexão teológica, acabou aproveitado e maximizado pela polarização ideológica que se produziu.

Também é possível que, no Brasil, a difusão de novas perspectivas teológicas, feita com compreensível imaturidade pelos jovens estudantes, tenha colaborado para acirrar o quadro de enfrentamento. O que deveria ser feito através de cuidadoso trabalho teológico, com reflexão aprofundada e lenta tradução para as dimensões mais "paroquianas" das comunidades de fé, acabou realizado de forma apaixonada, entusiástica mas precipitada. Nesse contexto, as alegações do CIIC, que enviava emissários ao Brasil ao longo da década de 1950 e procurava cooptar as lideranças denominacionais, pareciam fazer sentido. O CIIC juntava à polarização política (CIIC e "mundo livre" versus CMI e comunistas) a polarização teológica: o CIIC seria, nessa estratégia de propaganda, o defensor da "pureza doutrinária" do "fundamentalismo", enquanto o CMI seria a expressão acabada do "liberalismo teológico".

Esse foi o tom, altamente impreciso mas de grande eficácia propagandística, usado pelo CIIC. É verdade que sua abordagem, francamente polêmica e violenta, não seduziu a maioria das lideranças evangélicas brasileiras, que prefiraram, oficialmente, definir-se como "equidistantes" tanto do CIIC quanto do CMI. Essa, ao menos, foi a postura oficial; mas, na prática, essas lideranças, teologicamente conservadoras, aceitaram a relação ecumenismo/teologia "liberal"/comunismo, proposta pelo CIIC. Um exemplo emblemático é a publicação, no próprio ano de 1964, do livro de Robert S. Rapp, A Confederação Evangélica do Brasil e o Evangelho Social.[4] O livro é um libelo violento contra a presença de quaisquer denominações no âmbito da Confederação Evangélica; a própria Igreja Presbiteriana do Brasil é increpada, nele, por continuar a fazer parte de uma organização que, para o autor, servia aos interesses do comunismo internacional e do liberalismo teológico. A reprodução e difusão dessas acusações através de veículos comuns nos meios religiosos (sermões, artigos em jornais denominacionais etc.), mesmo por parte de líderes não alinhados com o CIIC, nos permite perceber como mesmo líderes denominacionais menos "extremados" acabaram por reagir contrariamente aos defensores de uma abordagem mais ousada aos problemas sociais.

Efetivamente, a Confederação Evangélica do Brasil organizara em 1962, através de um de seus departamentos, o Setor de Responsabilidade Social da Igreja, a famosa "Conferência do Nordeste", cujo tema foi Cristo e o processo revolucionário brasileiro. O tema indicou profunda sensibilidade para com a realidade então vivida pelo país; e não implicava, necessariamente, numa tomada de posição em favor do comunismo (assim como, a rigor, as posturas do governo João Goulart tinham mais a ver com o trabalhismo histórico brasileiro e com a democracia burguesa do que com o socialismo). Mas distinções sutis dificilmente seriam percebidas, num clima marcado por animosidade cada vez maior. A realização da Conferência do Nordeste fez aumentar as suspeitas em torno da Confederação ou, ao menos, em torno de alguns de seus diretores. Às vésperas do golpe, quatro dos seis diretores da Confederação foram sumariamente exonerados. Robert Rapp, que comemora o fato afirmando que essa "limpeza" deveria ter sido feita um ano antes, chega a perguntar: "Será que a Junta revolucionária [sic] do novo governo apresentou uma lista de nomes à C.E.B. exigindo que ela mesma fizesse a limpeza ou, do contrário, esta seria feita pelo governo?"[5]

Não repugna ao autor, um norte-americano teoricamente comprometido com a "democracia", uma referência assim oblíqua a métodos truculentos e anti-democráticos de um governo golpista. O fato é que, para esses segmentos que viam com preocupação o casamento entre inquietações teológicas e preocupações sociais, o golpe, chamado por eles de "revolução", aparecia como solução salvadora ou, no mínimo, como o menor dos males.

A esta altura, seria interessante notar as posições assumidas no interior de um movimento que crescia em importância no seio das igrejas evangélicas: o movimento carismático, que, no Brasil, ficou conhecido como de "renovação espiritual". Não é preciso lembrar que esse movimento só acrescentava, à caracterização geral que fizemos dos evangélicos tradicionais, a abertura para as manifestações pentecostais; não subtraía nada do ideário tipico do movimento evangélico. Portanto, quando líderes da "renovação espiritual" se referiam ao quadro pré-1964, faziam-no em grande consonância com as lideranças mais conservadoras das denominações às quais, naquele momento, todos os envolvidos em "renovação espiritual" ainda pertenciam.

Em suas recordações sobre sua própria participação no movimento de renovação espiritual, o pastor Enéas Tognini, batista, pinta um quadro bastante drástico da situação imediatamente anterior a 1964. A Universidade de São Paulo, segundo ele teria ouvido de um amigo, era local onde "o poder comunista domina quase todas as cátedras e se escoa pelos bancos, indo alcançar as massas".[6] Um folheto, escrito pelo pastor Tognini e convocando os evangélicos brasileiros a um dia de jejum em prol da nação, foi impresso pela metade do custo, segundo ele, porque os donos da tipografia "também estavam com medo do comunismo".[7] Nesse folheto, entre outras coisas, o pastor Tognini afirmava: "Há semelhança alarmante entre as condições da China daqueles dias [a época da implantação do regime comunista] com as atuais do Brasil"[8]. A solução, segundo apontava o pastor Tognini, estava em oração unânime, suplicando pela misericórdia divina.

Esse dia de intercessão ocorreu, pela primeira vez, a 15 de novembro de 1963. Em suas memórias, o pastor Tognini dá a seguinte interpretação: "E nesse dia travou-se com o diabo a grande batalha. (...) E a resposta a esta batalha do céu foi 31 de março de 1964. A revolução sem sangue. E o diabo não conseguiu tomar o Brasil".[9]

Essa interpretação deu sanção religiosa a um regime que, em nome do combate à "ameaça comunista", suprimiu liberdades individuais, prendeu ilegalmente, torturou e assassinou pessoas (e é importante lembrar que as torturas começaram já em 1964, não esperando pelo "endurecimento" da ditadura após dezembro de 1968). Um regime que, em nome do combate à corrupção, introduziu o Brasil numa fase de corrupção desenfreada, conquanto mascarada pela subserviência dos meios de comunicação. Um regime que, ao longo de seus vinte e um anos de existência, ampliou e aprofundou as já então enormes desigualdades sociais existentes em nosso país.

Por outro lado, os clamores por mudanças que, efetivamente, ocorriam no Brasil antes do golpe, tinham relação direta com a situação de enorme exclusão vivida por grande parte da população. Com relação a esse problema capital, as igrejas evangélicas mantinham-se absolutamente caladas. Quando abandonavam o silêncio, era para fazer afirmações catastróficas, como as que encontramos no libelo de Robert Rapp: "A miséria", escreveu ele, "existe por causa do pecado, e o pecado existe porque Deus, de acordo com sua soberana e perfeita vontade, tem decretado permitir a entrada do pecado no mundo. (...) O conceito bíblico de Deus exige que o pecado e a sua consequente miséria sejam entendidos como algo que foi soberanamente permitido para entrar na raça humana, porque Deus, em sua infinita sabedoria, fez um plano geral para a sua criação no qual Ele pôde receber mais honra e glória permitindo a queda do primeiro homem do que se não a tivesse permitido".[10]

Entre evangélicos que afirmavam, como Rapp, a inevitabilidade da miséria tendo em vista os desígnios de Deus, e aqueles que preferiam colocar os olhos na justiça do "celeste porvir", não havia alternativas claras para a crise social. Mesmo entre os de "renovação espiritual" a ênfase estava toda na qualidade da experiência religiosa individual; toda preocupação com a injustiça social, estrutural, era denunciada como perigosa. A exceção a esse quadro foi aquela parcela da juventude evangélica brasileira que se aproximou dos ideários veiculados pela União Cristã de Estudantes do Brasil e pelo Setor de Responsabilidade Social da Igreja da Confederação Evangélica do Brasil. Essa juventude, no entanto, foi sumariamente ceifada, nos âmbitos denominacionais, pela repressão pré e pós-1964. Muitos perderam postos denominacionais; com a intensificação da oposição à ditadura e, consequentemente, da repressão, muitos foram denunciados aos militares por seus próprios irmãos de fé, por seus pastores e presbíteros.

As reações, em termos de ações ou de omissões, das igrejas evangélicas ao golpe de 1964 não se explicam a partir, unicamente, do fato do golpe. Precisam ser inseridas num quadro maior, onde aparece a intensa manipulação ideológica para a qual, conscientes ou não, muitos pastores e líderes se prestaram. Abraçando a defesa do status quo fundamentalmente injusto de nossa sociedade e fechando os olhos para a máquina de horrores que se estabeleceu em nosso país por iniciativa dos militares golpistas, setores predominantes do evangelicalismo brasileiro fizeram uma obra digna das trevas, ao mesmo tempo em que oravam e cantavam louvores a Deus.


[1] Professor de História Moderna na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

[2] Um trabalho importante sobre a resistência de setores evangélicos ao golpe militar continua sendo o livro de João Dias de Araújo, Inquisição sem fogueiras. Rio de Janeiro: Instituto Superior de Estudos da Religião, 2ª. edição, 1982, que aborda a realidade vivida dentro da Igreja Presbiteriana do Brasil (o texto recebeu uma terceira edição, agora pela Fonte Editorial, de São Paulo, em 2010). Estudos sobre outras expressões da fé evangélica têm vindo à luz nos últimos anos. Ver, por exemplo, Vasni de Almeida, "Os metodistas e o golpe militar de 1964". Estudos da Religião 37 (2009): 54-68; José Ferreira de Lima Júnior, Protestantismo e golpe militar de 1964 em Pernambuco: Uma análise da Cruzada de Ação Básica Cristã. Dissertação de Mestrado em Ciências da Religião. Recife: Universidade Católica de Pernambuco, 2008; Donner, Sandra Cristina. "Os jovens luteranos e a 'revolução brasileira'. Um estudo histórico sobre a Congregação dos Estudantes de Porto Alegre na década de 1960". Anais do IV Encontro Nacional do GT História das Religiões e das Religiosidades - ANPUH (disponível em https://www.dhi.uem.br/gtreligiao/anais4/st8/4.pdf). Excelente visão de conjunto do protestantismo brasileiro, com especial atenção para o período que nos interessa, está em Antônio Gouvea Mendonça, "O protestantismo brasileiro e suas encruzilhadas". Revista USP 67 (2005): 48-67.

[3] Sobre Shaull, ver os textos de sua autoria, juntamente com as impressões narradas por seus alunos, em Richard Shaull, De dentro do furacão. Richard Shaull e os primórdios da Teologia da Libertação. São Paulo: Edições Sagarana/CEDI/CLAI, 1985; ver também sua autobiografia: Richard Shaull, Surpreendido pela Graça: Memórias de um teólogo. Estados Unidos, América Latina, Brasil. Rio de Janeiro: Record, 2003.

[4]Robert S. Rapp. A Conferederação Evangélica do Brasil e o Evangelho Social. São Paulo: Missão Bíblica Presbiteriana no Brasil, 1964. Essa Missão, filiada à CIEF - Confederação de Igrejas Evangélicas Fundamentalistas do Brasil, publicava o jornal "O Presbiteriano Bíblico" e tinha ligações com a Igreja Presbiteriana Conservadora (surgida de um cisma na Igreja Presbiteriana Independente em 1942) e com o CIIC.

[5] Rapp, op. cit. p. 23. Rapp informa que a exoneração ocorreu a 23 de abril de 1964, portanto após o golpe. Waldo César, um dos diretores exonerados na ocasião, contou em entrevista à Revista Ultimato (março/abril de 2007) que a demissão ocorrera, de fato, um mês antes do golpe. Ao contrário do que supunha Rapp, portanto, os mecanismos de repressão já operavam de dentro da própria Confederação, sem a necessidade de esperar pela pressão da ditadura.

[6] Enéas Tognini, Renovação espiritual no Brasil (experiências do autor). São Paulo: Editora Renovação Espiritual, sem data, p. 55.

[7] Tognini, op. cit. p. 62.

[8] Tognini, op. cit. p. 60.

[9] Tognini, op. cit. p. 62.

[10] Rapp, op. cit. p. 47 (grifos do autor).

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