“America (not so) great again!” Donald Trump e os Muçulmanos nos Estados Unidos.
por Sara Cristina de Souza[i]

Há um ano, em novembro de 2016, encerrava-se nos Estados Unidos um dos pleitos presidenciais mais inusitados de sua história. Donald Trump, republicano, empresário e ex- apresentador de reality show, vencera as eleições contra Hillary Clinton, democrata, cuja carreira política como senadora e Secretária de Estado de Barack Obama a apontava como favorita da disputa. Se muitas pessoas no mundo todo se espantaram com o resultado, o espanto agravou-se durante o primeiro ano do governo Trump, marcado pelo acirramento da intolerância, pela troca de ameaças com a Coréia do Norte - feitas inclusive pelas redes sociais -, e, em especial, pela controversa posição do presidente em relação às populações muçulmanas, tanto nos Estados Unidos quanto no exterior. Por mais que os porta-vozes da Casa Branca insistam que a questão não é religiosa, mas de segurança nacional, o posicionamento intransigente da presidência em relação ao "terrorismo islâmico" e, por extensão, às populações muçulmanas denota o contrário, reforçando estereótipos, conflitos e preconceitos.
Desde sua campanha, Donald Trump ressalta que o combate ao "terrorismo islâmico radical" é uma de suas principais plataformas. Isso ficou bem evidente em sua primeira propaganda televisiva, veiculada a partir de 4 de janeiro de 2016 nos Estados Unidos. Com imagens em preto e branco ao som de uma música densa (você pode acessar o vídeo original aqui https://www.youtube.com/watch?v=2UoQff8MMVM), o narrador fala: "Os políticos podem fingir que é outra coisa, mas Donald Trump chama isso de terrorismo islâmico radical. É por isso que ele defende a suspensão temporária da entrada de muçulmanos nos Estados Unidos até que nós possamos entender o que está acontecendo. Ele cortará rapidamente a cabeça do Estado Islâmico e tomará o seu petróleo." Em 30 segundos de propaganda, 20 segundos são dedicados ao "terrorismo islâmico radical"; no restante do tempo, um segundo projeto é apresentado - a construção do muro na fronteira com o México - e a propaganda se encerra com imagens coloridas de um discurso de Trump: "We will make America great again!" ["Nós faremos os Estados Unidos grandiosos novamente!"]
Se no início de 2016 a propaganda parecia exagerada e suas metas, impossíveis, a vitória de Trump nas eleições em novembro daquele ano mostrou que seu discurso ressoou em uma parte significativa do eleitorado americano. Por certo, outros fatores foram decisivos na vitória do candidato, mas seu tom alarmista e imediatista em tempos de ataques terroristas, da guerra na Síria e do Estado Islâmico encontrou espaço num imaginário americano cuja memória dos ataques de 11 de setembro ainda é bastante presente, e cujo medo de um novo ataque parece constante.
Em 20 de janeiro de 2017, Trump tomou posse e não demorou para começar a cumprir as promessas de campanha. Uma semana depois, em 27 de janeiro, uma ordem executiva da presidência proibiu a entrada nos Estados Unidos de cidadãos do Iraque, Síria, Irã, Líbia, Somália, Sudão e Iêmen, incluindo portadores do green card. Protestos começaram imediatamente. Centenas de pessoas se encontraram encurraladas nos aeroportos, enquanto advogados nos saguões desses mesmos aeroportos tentavam auxiliá-las. Alguns juízes, como Ann M. Donnelly, de Nova York, conseguiram bloquear parte da ordem executiva. Em 30 de janeiro, o ex-presidente Barack Obama criticou a atitude de Trump, no mesmo dia em que senadores republicanos conseguiram impedir o avanço das discussões sobre a proibição no Senado, e Sally Yates, então Procuradora Geral, foi demitida ao se negar a defender a proibição. Os representantes da Casa Branca, no entanto, continuaram a defender a ordem executiva. No início de fevereiro, o governo retirou a proibição para portadores do green card e enfrentou novas derrotas judiciais, que conseguiram suspender a proibição temporariamente.
Em 28 de fevereiro, no entanto, Trump voltou a defender sua posição em seu primeiro discurso ao Congresso (você pode conferir o texto integral aqui - https://www.whitehouse.gov/the-press-office/2017/02/28/remarks-president-trump-joint-address-congress). Nessa ocasião, o presidente afirmou que era sua obrigação "servir, proteger e defender os cidadãos dos Estados Unidos. Nós também estamos tomando medidas severas para proteger nossa nação contra o terrorismo islâmico radical."
Em 6 de março, um novo veto é lançado pelo governo, excluindo o Iraque da lista dos países bloqueados. A partir de 16 de março, cidadãos do Irã, Líbia, Somália, Sudão, Síria e Iêmen continuariam proibidos de entrar nos Estados Unidos por 90 dias, e todos os refugiados por 120 dias. No dia 15 de março, no entanto, esse veto também foi suspenso pela justiça. O embate entre governo e judiciário foi intenso ao longo de todo o ano. Em novembro de 2017, o veto proposto por Trump continuava suspenso, e o presidente não perde oportunidade para defendê-lo, como ocorreu após o atentado que matou mais de 200 pessoas no Egito (uma imagem do post de Trump no Twitter defendendo o veto pode ser vista aqui https://oglobo.globo.com/mundo/apos-atentado-matar-235-em-mesquita-trump-exalta-veto-que-atinge-muculmanos-22113450).
Enquanto a presidência e seus apoiadores continuam a defender o veto como medidas necessárias de segurança nacional, a postura pessoal de Trump nas redes sociais indica algo mais. Nos últimos dias, em 29 de novembro, o presidente voltou a causar polêmica ao compartilhar vídeos que mostrariam supostos muçulmanos cometendo atos violentos e intolerantes. Sua fonte foi a conta de Jayda Fransen, vice-presidente do grupo Britain First, conhecido por sua campanha islamofóbica. As reações foram imediatas. Enquanto Fransen comemorou o compartilhamento, autoridades britânicas condenaram a atitude de Trump, alegando que o vídeo ajudava a propagar mensagens de ódio nem sempre verídicas. À Primeira Ministra britânica Theresa May, Trump respondeu: "Não se concentre em mim, se concentre no destrutivo terrorismo islâmico radical que está tomando conta do Reino Unido. Nós estamos muito bem!" (https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2017/11/30/nao-se-concentre-em-mim-diz-trump-a-premie-britanica-apos-compartilhar-videos-antimuculmanos.htm) O Conselho de Relações Islâmico-Americanas, dos Estados Unidos, também se manifestou contra os vídeos.
Sarah Huckabee Sanders, porta voz da Casa Branca, foi questionada se Trump verificou se o conteúdo era verídico. Em resposta, ela disse que as pessoas não estavam prestando atenção no que importava: não interessava se o vídeo era real ou não, mas sim que "a ameaça é real", e era sobre isso que o presidente estava falando ao compartilhar os vídeos. Poucas horas depois do compartilhamento, a imprensa internacional já divulgava que as imagens estavam fora de contexto ou eram falsas (https://oglobo.globo.com/mundo/videos-usados-por-trump-para-culpar-muculmanos-tem-contexto-falso-22130196).
O veto ordenado pela Presidência, assim como os vídeos compartilhados por Trump e a crescente islamofobia nos Estados Unidos indicam que o chamado "combate ao terrorismo" legitima muitas vezes a propagação de discursos racistas, xenofóbicos e intolerantes, em especial em relação às populações muçulmanas. Edward W. Said afirmou em 1996, na introdução de seu livro Covering Islam, que "generalizações maldosas sobre o islã se tornaram a última forma aceita de difamação de uma cultura estrangeira no Ocidente", e que aquilo que se é permitido dizer sobre o islã não pode ser dito sobre africanos, judeus, asiáticos ou outros povos orientais (p. XII). Duas décadas depois, sua afirmação ainda encontra correspondência em nosso presente. Nas afirmações de Trump, o termo "islã" é utilizado como um rótulo generalizante, muitas vezes adjetivado - como na expressão "terrorismo islâmico" - e questões políticas e sociais, assim como comportamentos violentos e terroristas, são de pronto associados a uma religião. Nas palavras de Said, "muito do que se lê e se vê na mídia sobre o islã apresenta a agressão partindo do islã porque isso é o que 'o islã' é. Circunstâncias locais e concretas são então apagadas." (p. XXII) Assim, nesses discursos, não há esforços para se compreender o surgimento do terrorismo na contemporaneidade, sua construção histórica no encontro das culturas ocidentais e orientais, especialmente nos territórios colonizados pelas investidas imperialistas entre os séculos XIX e XX. O terrorismo islâmico aparece como um dado, ele "é o que é", simplesmente por "ser" islâmico - violento e ressentido.
Ressaltar esses aspectos do discurso de Trump - e de muitos outros - não significa negar a existência de ataques e ações terroristas, e que muitos grupos cometem atentados "em nome de Alá". A intenção é observar suas generalizações e chamar atenção para as tentativas de desumanização dos povos muçulmanos - como o veto à entrada de todas as pessoas naturais de seis países nos Estados Unidos infelizmente ilustra -, assim como de naturalizar e associar comportamentos terroristas a uma religião. Como afirmou Karen Armstrong em entrevista recente, o terrorismo é político, e enquanto a política externa de Trump continuar a considerá-lo como exclusivamente "islâmico", continuaremos a assistir episódios infelizes como os ocorridos em 2017.
Sugestões de leitura:
SAID, Edward W. Covering Islam. How the media and the experts determine how we see the rest of the world. Revised Edition. New York: Vintage Books, 1997.
Entrevista com Karen Armstong:
https://brasil.elpais.com/brasil/2017/11/07/eps/1510080049_545323.html
[i]Doutoranda em História Cultural na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), sob orientação da Prof.ª Dr.ª Eliane Moura da Silva. Pela mesma universidade, é Mestre em História Cultural e graduada em História (licenciatura e bacharelado). Atualmente, pesquisa sobre a representação do Islã na imprensa cristã dos Estados Unidos durante a Revolução Iraniana de 1979. No mestrado, pesquisou sobre grupos leigos da Igreja Católica brasileira durante a Ditadura Militar (1964-85), tendo como objeto os Cursilhos de Cristandade. Seus interesses concentram-se em história das religiões na contemporaneidade, história contemporânea, história da imprensa, Estados Unidos, Islamismo, Cristianismo. Realizou estágio doutoral na University of Colorado, Boulder, no Center for Media, Religion, and Culture, supervisionada pelo Prof. Dr. Stewart M. Hoover.
Currículo Lattes:
https://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4757973E4
